São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Regras para a imortalidade

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ao exigir do artista uma atitude consciente em relação ao seu trabalho, você tem razão, mas confunde dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista."
Assim Anton P. Tchekhov (1860-1904) responde a uma carta de seu editor, o famoso jornalista Alekséi S. Suvórin, diretor do prestigioso jornal "Nóvoie Vrêmia" e amigo do escritor até o fim da década de 1890, quando a amizade dos dois foi abalada pelas posições de Suvórin no caso Dreyfus.
Este é um dos princípios básicos do ideário estético de Tchekhov, mestre do conto e do teatro modernos, cuja correspondência de 1880 a 1890 foi traduzida, selecionada e analisada no livro "A. P. Tchekhov: Cartas Para uma Poética", com rara acuidade e sensibilidade, por Sophia Angelides, professora do curso de russo da USP, recentemente morta.
Com efeito, a correspondência do autor é utilizada de modo a revelar o conjunto de sua poética, evidenciando a questão extremamente atual das relações entre ficção e realidade, que tem preocupado cada vez mais pensadores das mais diversas extrações. Poucos porém são os que, como o médico Tchekhov, conseguem pôr o dedo na chaga, respondendo "cientificamente" às críticas nem sempre justificadas dos que reclamaram quando "algo obscuro e ininteligível é levado mais a sério e visto como mais profundo do que algo claro e inteligível".
"A ficção literária não é miragem do real" -argumenta por exemplo o sociólogo Ruy Coelho, no admirável ensaio "Ficção e Realidade" (in "Esboço de Figura", Editora Duas Cidades, 1979)- "mas outro modo de sua apreensão pelo discurso. O erro filosófico tradicional de buscar essências se origina na noção falsa de que somente conceitos nitidamente definidos são completos e úteis. Na verdade, os diferentes tipos de discurso se vinculam diretamente ao real e o constituem segundo usos diversos. Nem tudo o que se afasta do unívoco é necessariamente equívoco. A literatura se esforça por expressar o multívoco: a ambiguidade de sentidos é calculada e impõe a quem a cultiva uma disciplina de espírito e uma tarefa de purificação da linguagem tão ou mais árdua do que a ascese lógica. (...)
"Antes de tudo, que se reconheça à linguagem a faculdade de construir (se não criar) objetos, que, se bem existam num campo imaginário, não têm valor de realidade nulo.
"Modificando a fórmula de Susanne Langer, são experiências virtuais de vida, não experiências de vida virtual. Ao apreciá-los (...) convém suspender o exame de suas ligações imediatas com o mundo como as estabelece nosso saber atual (...). Mas isto não significa que se deva conceber um universo da arte à distância da realidade vivida. (...)
"A literatura não reproduz o real conhecido por outros modos, mas é ela própria instrumento de descoberta. Cumpre avaliar a informação nova que ela traz, dilatando as fronteiras do real."
É justamente a atuação da literatura enquanto instrumento privilegiado de manifestação do real que Tchekhov insiste em mostrar a seus correspondentes: editores, críticos, escritores, tocando nos argumentos expostos e em muitos mais, na sua maneira inconfundível. Eis, por exemplo, o que ele escreve sobre a lei da criação:
"Quem domina o método científico pressente que uma peça musical e uma árvore têm algo em comum: uma e outra são igualmente feitas através de leis simples e exatas. Daí a questão: quais são essas leis? (...)
"A desgraça é que o pensamento científico sobre a criação, quer queira, quer não, será finalmente reduzido à procura de 'células' ou 'centros' condutores da faculdade criadora. E, depois, um alemão obtuso descobrirá essas células em algum lugar da região temporal do cérebro; um outro alemão não concordará com ele e um terceiro concordará. Um russo, então, dará uma olhada no artigo sobre as células e mandará um resumo para o 'Séverni Véstnik'. O 'Véstnik Evrópi' começará a analisar esse resumo e, durante uns três anos, o ar russo ficará impregnado de uma epidemia absurda, que dará salário e popularidade aos imbecis e provocará apenas irritação nas pessoas inteligentes.
"Para aqueles que são atormentados pelo método científico, para quem Deus deu o raro talento de pensar cientificamente, há, a meu ver, uma única saída: a filosofia da criação. É possível agrupar o que há de melhor, criado por artistas de todos os tempos, e, utilizando o método científico, captar o traço comum que torna essas obras semelhantes e determina o seu valor. Esse traço comum será a lei. As obras que são chamadas imortais têm muita coisa em comum; se for suprimido de cada uma delas esse traço comum, a obra perderá o seu valor e o seu encanto. Então, esse traço comum é indispensável, e constitui a 'conditio sine qua non' de toda obra que aspire à imortalidade". (Carta 32)

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