São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Furor contra Furet

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns intelectuais de esquerda mostram tal incapacidade para entender o último livro de François Furet, "Le Passé d'une Illusion - Essais Sur l'Idée Communiste au XXe. Siècle", que o fenômeno merece ele mesmo ser pensado. Não repetiria esta obtusão, com materiais diferentes, o mesmo tipo de bloqueio ideológico que o historiador pretende estudar?
Citei o título do livro em francês, e por inteiro, porque nele o objeto de estudo fica claramente delineado. Ele não trata de analisar o percurso comunista -desse movimento social que atravessou o século-, nem os sucessos e as vicissitudes do marxismo, muito menos tenta esboçar a história desse período. Simplesmente, em primeiro lugar, constrói um objeto, a idéia de comunismo. Não como foi pensada pelos antigos ou pelos socialistas utópicos, muito menos por Marx ou por Engels, mas tão-somente como a Revolução de Outubro, algo que ocorre na periferia do capitalismo e nas condições especiais provocadas pela Segunda Guerra Mundial, vê-se promovida ao estatuto de paradigma de como se forjará um novo homem, livre e cosmopolita. Isso, porque ela desde logo se autodenominou marxista e comunista.
Em seguida, examina como esse esquema vai sendo reinterpretado e recheado por novas situações, sem que os intelectuais que o alimentam enxerguem que o regime soviético nem é cosmopolita nem é popular-democrático, como sempre disse que foi. Mas a crítica marxista não deve começar denunciando o discurso que oculta a prática antagônica a ele?
Se Furet não acredita na necessidade da história é uma questão relevante para a discussão de sua metodologia, mas sabemos que até mesmo métodos deficientes podem induzir a belos livros. O que seria dos maravilhosos estudos de Malinowski se ele fosse um estrito funcionalista? Que Furet combate uma história marxista é sabido por todo o mundo, mas isso não o impede de construir um objeto válido, a ilusão do comunismo, e verificar como perdurou por tanto tempo.
Note-se que, dessa ótica, todos os fatos só precisam ser invocados na medida em que se relacionam com a ilusão. As duas guerras mundiais, o próprio movimento comunista, com seus sucessos e suas crises, enfim, todos os fatos cujas análises comparecem no livro só interessam como elementos explicativos dessa ilusão, que está na raiz de muitos comportamentos políticos. É falta de pudor dizer que identifica comunismo e nazismo, dois eventos que travaram este século, mas só não vê quem não quer que a idéia de comunismo e a idéia de nazismo se complementam na crítica da democracia burguesa, a primeira advogando o universalismo, a segunda, o nacionalismo.
Dado o caráter do objeto, o caminho que Furet deve seguir fica determinado de antemão: cabe-lhe coletar aqueles escritos que, a despeito de revelarem que os autores têm alguma percepção das monstruosidades do regime soviético, continuam a manter viva a ilusão de que os males criados pelo capitalismo podem ser curados por uma revolução feita nos moldes russos. Daí seu projeto de selecionar textos que tratam desse assunto, sendo bobagem acusá-lo de escrever más biografias.
É ainda descabido reclamar que não leva em consideração as extraordinárias contribuições dos frankfurtianos para o entendimento da sociedade contemporânea, pois estes autores não foram estritamente comunistas e não caíram na ilusão estudada. Mais ainda, que ele cultua a personalidade de Stálin ou de Hitler, pois Furet não está afirmando que o comunismo e o nazismo, como processos históricos, brotaram da mente desses dois líderes, mas simplesmente que, sem o culto das duas personalidades e sobretudo sem a encenação histriônica dos dois, as idéias de comunismo e de nazismo teriam soçobrado. Enfim, a crítica a este livro de Furet, para ser intelectualmente honesta, ou deve mostrar que seu objeto carece de importância ou que examina esse ou aquele sistema de idéias incorretamente. O insulto não ilustra ninguém.
O mais interessante, contudo, não é apontar a enxurrada de tolices que o livro tem provocado. Importa perguntar como isso é possível. A intenção é óbvia: trata-se de defender a viabilidade da idéia de socialismo e a importância intelectual do marxismo, mesmo se Furet apenas estuda e denuncia a caricatura, sobretudo o aspecto ideológico e religioso dessas formas de pensamento. De um ponto de vista histórico, socialistas foram aqueles movimentos que se autodenominaram socialistas. Furet não é louco de afirmar que as mazelas deles derivam diretamente das idéias de Marx -isso seria contrário à sua concepção de história. Ou os críticos de Furet são de tal forma providos de senso de humor, que são incapazes de distinguir o pensamento de Marx de suas caricaturas? Mas, que o socialismo real se alimentou de uma ilusão, parece-me difícil de negar.
Nenhum dos detratores do livro defendem o gulag, embora alguns ainda claudiquem na defesa dos processos democráticos. Mas seria o desentendimento do ponto de vista alheio a melhor maneira de manter vivo o projeto de uma sociedade mais justa e igualitária, onde não teriam vigência as perversidades do capital? E o próprio Furet não endossaria esse projeto, a despeito de propor soluções diferentes daquelas endossadas pelas esquerdas?
Existe, a meu ver, no próprio marxismo, um ponto cego que facilita esse voluntarismo negativo, que no debate intelectual teme ceder qualquer argumento ao adversário e termina por negar a legitimidade do interlocutor antes de compreender e refutar suas idéias. Se a verdade não é uma questão teórica, mas prática, se a verdade do bolo é comê-lo, então o adversário se engana mesmo quando está de boa-fé, porque não está pensando a partir de interesses de um particular representante da humanidade como um todo.
No entanto, depois que a idéia de um proletariado universal foi por água abaixo, quem ainda ousa se propor como o intérprete da história? Mesmo aqueles que ainda se acreditam ecos de um movimento mais próximo, que extravasa seus pensamentos, devem convir que somente a técnica de mudar de perspectiva permite ao intelectual cumprir sua tarefa de apresentar o real e pensar os procedimentos pelos quais isto se torna possível. A intolerância despertada pelo livro de Furet não colabora para que aprendamos essa técnica e busquemos novos pensamentos, pelo contrário, mostra que a idéia de um comunismo, generalizando uma ótica singular e tendendo a excluir violentamente qualquer particularidade, continua muito viva.

O LIVRO
"O Passado de uma Ilusão", de François Furet, foi lançado pela editora Siciliano (604 págs., R$ 53,00)

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