São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No inferno da corrupção

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tahar Ben Jelloun é originário do Marrocos, mas vive em Paris. Com "A Noite Sagrada" ganhou em 1987 o maior prêmio literário francês, o Goncourt. Em 1994, publicou "O Homem Rompido", que trata da corrupção no Marrocos, e recebeu pelo conjunto da sua obra o grande prêmio literário do Magreb.
Mourad, o personagem principal de "O Homem Rompido", vive em Casablanca. Não gosta dos islamitas e tampouco da sogra, que faz pouco dele por causa da pobreza. Trabalha no Ministério da Construção. Sua tarefa? Autorizar ou não a execução de projetos. Ao contrário dos colegas, que são todos corruptos, Mourad teima em recusar o suborno, o chamado "bakchich". Até que um dia, para pagar as dívidas, ele se deixa corromper. É esta descida aos infernos que Ben Jelloun conta no romance, um retrato de uma sociedade na qual a virtude não faz sentido diante de um punhado de "dirhams".
Tahar Ben Jelloun mostra a lógica a que o indivíduo está sujeito num país corrupto e desmonta o mecanismo por meio do qual o indivíduo, por mais moral, acaba cedendo. A história, que se passa no Marrocos, diz respeito aos outros países do Terceiro Mundo e, por isso, interessa particularmente ao Brasil.
Pela inteligência, "O Homem Rompido" faz pensar em "Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch", de Soljenitsin, que evidencia a lógica a que está submetido o prisioneiro num campo de concentração.
Leia a seguir a entrevista que Jelloun deu à Folha, no seu apartamento em Saint-Germain-des-Près.

Folha - O sr. afirma que deve "O Homem Rompido" ao autor de "Corrupção", o escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer, que está em liberdade vigiada e proibido de publicar o que quer que seja. Qual a razão da dívida?
Tahar Ben Jelloun - Eu descobri o livro quando estive na Indonésia. Lendo-o, disse a mim mesmo que era uma história que poderia ter acontecido no Marrocos, mas que a reação dos marroquinos seria diferente. Tentei encontrar Toer, mas me disseram que ele era muito controlado pela polícia e que, se recebesse um estrangeiro, poderia vir a ter problemas sérios.
No avião, de volta para a França, me ocorreu escrever um romance que se passasse no Marrocos, inspirado na intriga do romance de Toer, porém com diferenças consideráveis. No meu livro, tudo se passa nos dias de hoje, no dele as coisas se passam depois da independência da Indonésia, nos anos 50. À medida em que eu avançava na escrita, ia me separando do livro de Toer.
Folha - O sr. diz que os personagens no Marrocos teriam reagido de maneira diferente. Quanto ao quê, em particular?
Jelloun - Pensava sobretudo na mulher do personagem principal. No romance indonésio, ela controla o dinheiro da família e, quando o marido recebe o primeiro suborno, ela se dá conta e o expulsa de casa. No Marrocos, isso é impensável, a pequeno-burguesa quer tanto se parecer com a burguesa, que ela força o marido a se corromper e o humilha todos os dias, porque ele não consegue dinheiro.
Folha - Quer dizer que a relação com a virtude é diferente?
Jelloun - Muito diferente. As mulheres marroquinas não têm a virtude da pobreza.
Folha - A virtude da pobreza ou do respeito à lei?
Jelloun - Do respeito à lei... A corrupção tornou-se tão generalizada, tornou-se praticamente necessária na situação econômica de certas sociedades, que todo mundo a pratica, é como uma segunda natureza. Isso acontece na maioria dos países do Terceiro Mundo. A corrupção existe numa escala mais importante nos países desenvolvidos, como a Itália, o Japão... É uma economia paralela no mundo inteiro. Não existe um Estado, hoje, que não tenha esse problema.
Folha - Mas por quê, na sua opinião, os homens dos países ricos também sucumbem à corrupção? No Terceiro Mundo, há uma pobreza tal, que o indivíduo não tem como resistir.
Jelloun - Sim, e ademais o Estado não trata os funcionários corretamente. O Estado fecha os olhos e deixa as pessoas completarem os seus salários, servindo-se no bolso do cidadão.
No mundo desenvolvido, a corrupção é uma atração pelo dinheiro fácil. Os países desenvolvidos, sejam eles da Europa ou sejam os Estados Unidos, são países gangrenados pela máfia, que é o sistema mais sofisticado, mais impiedoso da corrupção, do dinheiro sujo.
A gente tem a impressão de que, de um lado, estão os países pobres, que têm todos os defeitos, e, do outro, os países ricos, que vão muito bem, obrigado. Os países ricos têm taras que estão à altura e à medida da sua riqueza. Num país rico, um homem não pode ser corrompido com cem francos, é preciso ter alguns milhões de francos. Nos países pobres, o suborno é quase uma esmola. O cidadão que vai buscar um documento é praticamente obrigado a dar um dinheirinho, e isso é uma forma de corrupção.
Folha - Além de focalizar a corrupção por meio da história de Mourad, que não tem como resistir ao mal, o sr. faz um retrato do Marrocos, cujos tipos vão se revelando à medida em que o romance avança. Sua intenção era essa?
Jelloun - Em todo romance existe o projeto de fazer o retrato de uma sociedade. Um romancista tem um universo. Este universo é composto de vários livros. Cada livro introduz uma parte do universo. Em "O Homem Rompido", eu falo da corrupção. Em outro, falo da condição feminina. Em outro, da história. Com isso tudo, a gente chega a ter uma idéia do que é o Marrocos hoje.
Folha - Ao ler seu livro, eu várias vezes me disse que ele poderia ser uma história brasileira. Por exemplo, quando o narrador conta o caso de um médico que desviava o material do Estado para sua clínica e, embora responsável por várias mortes, nunca foi punido. Trata-se de uma história local e universal.
Jelloun - A história que eu conto é uma história verdadeira e é um fato que me revoltou realmente. Se um industrial dá dinheiro a um político que lhe obteve um negócio, isso não é um ato que lesa diretamente o cidadão. Claro que não é bom. Agora, um ministro da Saúde que desvia o dinheiro do Estado e do cidadão e, por causa disso, provoca mortes, este é um criminoso, que deve ser julgado e executado.
O ser humano é capaz de todas as perversidades. Somos capazes de tudo. Do pior e do melhor... O médico de que eu falo seria julgado, se houvesse justiça. É uma corrupção que tem efeitos assassinos. No limite, uma corrupção que tira dinheiro de um estabelecimento para dar a uma pessoa não me incomoda. Não é muito grave. Como, por exemplo, uma empresa, aqui na França, que financiou o jornal de um deputado em Grenoble. Pouco me importa que um deputado tenha recebido dinheiro de uma empresa que lhe presta um serviço. Isso não lesa o cidadão francês, não o impede de comer, de ter luz, gás etc. A corrupção é criminosa quando ela afeta áreas como as da saúde ou da educação.
Folha - Quanto à tragédia argelina, o sr. acha que ela pode se alastrar para a Tunísia e o Marrocos?
Jelloun - Isso interessa aos brasileiros?
Folha - Os brasileiros estão informados do que se passa na Argélia, dos assassinatos de escritores e intelectuais cometidos pelos islamitas.
Jelloun - Isso os toca?
Folha - Sim.
Jelloun - A situação da Argélia é preocupante para o resto do Magreb, porque assistimos a uma forma de ditadura do irracional, que é o religioso. Estamos muito inquietos. O Marrocos tem uma posição mais sólida. O rei tem uma legitimidade política. O Marrocos nunca cortou os laços com o Islã, sempre teve uma relação equilibrada com este. Só que há movimentos islamitas no Marrocos, e é preciso ter cuidado. A gente teme o contágio. A Tunísia está muito mais ameaçada, tem uma enorme fronteira com a Argélia.
Folha - Por que o sr. vive na França?
Jelloun - Questão de hábito, comodidade.

ONDE ENCOMENDAR
"O Homem Rompido", de Tajar Ben Jelloun (Éditions du Seuil), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, SÃo Paulo, tel. 011/231-4555)

Texto Anterior: Regras para a imortalidade
Próximo Texto: O zero e o infinito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.