São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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O zero e o infinito

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nada há de mais derrotado, no mundo contemporâneo, do que a poesia. Sem "audiência" e sem recepção, vaga -no campo das artes e no mundo real- como um fantasma ou senha de uma seita em extinção, sem que ninguém a entenda ou a organize. Talvez uma das causas deste fenômeno seja a vocação "conservadora" (ou neoconservadora: os que diluem o cubismo...) de grande parte dos poetas: curvam-se ante o passado e não o exploram criticamente. Passado recente, inclusive.
No contrafluxo desta resignação, esteve a "L=a=n=g=u=a=g=e Poety", movimento (findo) desencadeado nos EUA, em meados da década de 80, que, entre outras coisas, resgatou objetivistas como Loyis Zukofski e Lorine Niedcker e tentou recuperar um caráter nervoso, crítico, para a poesia, confrontando-se com a "beat generation". Aqui, no Brasil, o quadro é ainda mais difícil: o "debate" se trava em torno de traços dos anos 40 e 50 -os que são "contra" e os que são "a favor" da geração de 45. E ou da poesia concreta -movimento que enriqueceu a poesia brasileira, mas que hoje é histórico.
O mais recente livro de Ray DiPalma, intitulado "The Motion of Cypher" (1995), leva-me a pensar nisso. "Motion of Cypher" quer dizer movimento da ninharia, da insignificância, da nulidade, do zero. E, também, movimento da cifra (dinheiro, neoliberalismo). O título, ambíguo, designa ao mesmo tempo o estado da poesia (o "zero" pode ser início) no mundo e o estado do mundo. Zero e cifra. Nada e código.
DiPalma nasceu em 1943. Pertence à geração de Michael Palmer (traduzido por mim, ano passado) e à de Paulo Leminski, aqui. Reside em Nova York, onde trabalha também como artista gráfico e plástico. DiPalma é o criador do logotipo "L=a=n=g=u=a=g=e", estampado no jornal dirigido por Charles Bernstein, no início dos anos 80, uma das "sedes" de todo aquele movimento.
"Motion of Cypher" contém cerca de meia centena de poemas, muitos de porte alongado. DiPalma parece estar voltado para a busca de significados para as palavras, pela via do paradoxo: "Words make me see things to say. That words don't say" ("Palavras me fazem ver coisas a dizer/ que palavras não dizem"). Ou: "Words colonize/ meaning and/ vice versa" (Palavras colonizam/ significados/ e vice-versa). Parece querer dar um valor, mais do que um sentido, às palavras.
O caráter "filosofante" deste conjunto de poemas é apontado por Marjorie Perloff, que vê laços entre ele, conjunto, e a poesia de Wallace Stevens. Perloff todavia explica: "Stevens sob o signo do absurdo, sob o signo de dadá". DiPalma é um poeta que aspira à clareza, que a indaga, em seus versos: "The infinite to be/ two/ one and the same thing" (O infinito para ser/ dois/ um e a mesma coisa). A saturação da poesia sobre poesia talvez tenha levado poetas a quererem se aproximar da "filosofia", uma espécie de conteúdo.
O tom do livro revela uma das tendências atuais da poesia norte-americana: por um lado, a forte influência de Paul Celan (fragmentação do discurso e um tipo de engajamento político via metafísica), e, por outro, a busca do que dizer, busca de como se contrapor. A poesia tentando se encontrar com o "este mundo": "Darkness comes/ to sweeten/ the breath" (A escuridão vem para adocicar o alento).

ONDE ENCOMENDAR
"Motion of Cypher" (Roof Books) pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4933) e, no Rio, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396). Ou no seguinte endereço: 303 East 8th Street, New York, NY, 10009

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