São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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A questão do financiamento da cultura

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS

O governo Fernando Henrique Cardoso começou a criar, em 1995, um sistema mais adequado de financiamento da cultura no país. Em primeiro lugar iniciou a modernização da lei 8.313 (chamada Rouanet) e aumentou os descontos de 2% para 5% do Imposto de Renda de empresas que investem em cultura. Em segundo lugar aumentou -ainda em 1995- em mais de 83% o orçamento do Ministério da Cultura, permitindo-lhe investir R$ 87 milhões diretamente na área. Finalmente, em 96, propôs um orçamento superior a R$ 200 milhões, mais do que dobrando os R$ 104 milhões de 95 e consolidando o maior orçamento federal de cultura do país desde a democratização de 1985.
Mesmo se insuficientes, já que as necessidades acumuladas são enormes, tais resultados apontam para o importante lugar que a cultura -juntamente com a educação- tem no atual governo. Esse sabe que é impossível promover o crescimento econômico e a retomada do desenvolvimento do país se a cultura e a educação não são reconhecidas como partes indispensáveis dos esforços para unir e articular os diferentes grupos sociais em torno de objetivos que interessam a todos.
Isso é ainda mais importante quando o presidente anuncia que quer criar uma "ética de solidariedade" para fazer frente às desigualdades sociais, antigas e novas, que flagelam o país.
Com efeito a cultura não é apenas um atributo singular dos diferentes grupos étnicos e sociais que formam a nação.
Ela expressa identidades, modos de ser, aspirações e anseios -elementos centrais dos processos de mudança das sociedades democráticas. Por isso, desde o início de sua gestão, o ministro Francisco Weffort definiu, como elemento central da política cultural do governo, a parceria entre Estado, produtores culturais e empresas privadas.
Trata-se de um sistema coerente e estruturado de financiamento de atividades culturais que, de forma diferenciada, exige o apoio simultâneo do Estado e do mercado. Tal sistema, iniciado por José Sarney e continuado por Itamar Franco, aperfeiçoa-se na fase atual.
O primeiro passo dessa política foi a reforma da lei Rouanet. Ela objetivou desburocratizar e agilizar a lei e criar um mercado de intermediação de projetos culturais. Também aumentou a margem de desconto do IR de quem investe em cultura. Os resultados se refletiram, por um lado, no significativo aumento do número de projetos apresentados ao mecenato do Ministério da Cultura por produtores culturais: 1.248 em 1995, em contraste com os 453 de 1994; e, por outro, no crescimento da captação de recursos privados para a cultura, ou seja, quase US$ 49 milhões, em 1995, contra pouco menos de US$ 15 milhões em 1994 -quase três vezes mais.
Apesar disso o mecenato não esgota as necessidades de financiamento da enorme diversidade e riqueza da cultura brasileira. Muitas atividades artísticas e culturais dependem, para sua existência, do apoio direto, a fundo perdido, do próprio Estado.
Isso sem falar que, por sua natureza, o mecenato concentra-se nas regiões do país onde não apenas o mercado é mais vigoroso, mas, além disso, onde os próprios produtores culturais são mais agressivos, apresentam mais projetos e têm mais capacidade de captar os recursos privados. É o caso do Sudeste e do Sul, em contraste com o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste.
Um adequado sistema de financiamento da cultura supõe, portanto, também mecanismos como o Fundo Nacional de Cultura: apoio a fundo perdido a projetos de instituições públicas ou privadas (sem fins lucrativos), que traduzem a capilaridade e a complexidade do mundo da cultura, particularmente das expressões do interior do Brasil.
O FNC teve um orçamento de quase R$ 12 milhões em 1995, para uma demanda de cerca de R$ 114 milhões; ainda assim ampliou sua capacidade de atendimento, realizando 107 convênios em todo o país, contra 41 em 1994. Além disso fez uma distribuição mais equânime dos recursos entre as regiões mais pobres como o Nordeste e o Centro-Oeste. Isso equilibra a ação do mecenato que, como visto, atende melhor o Sudeste e o Sul.
Tais resultados são positivos, mas ainda insuficientes. Em 1996 o orçamento do FNC deve chegar a R$ 32 milhões, quase três vezes mais, mas ainda estará bastante aquém das necessidades, já que a demanda no ano deverá chegar a mais de R$ 330 milhões. Por que a demanda cresceu tanto se, em 1995, ela começou a ser atendida? Isso se deve a que, no mundo da cultura, diferentemente de outras áreas, em vez de diminuir a demanda aumenta quando começa a ser atendida, pois esse atendimento suscita necessidades que antes estavam reprimidas ou eram desconhecidas.
Governos que têm sensibilidade para perceber o significado estratégico da cultura para a vida da nação traduzem isso não apenas em ação conjuntural, mas na capacidade de criar alternativas duradouras, que possam sobreviver ao seu próprio ocaso.
No caso do governo FHC, tal sensibilidade tem se expressado na disposição pessoal do presidente em apoiar a criação de um adequado sistema de financiamento da cultura, algo capaz de articular, ao mesmo tempo, a indispensável responsabilidade do Estado e o lugar das empresas privadas na área.
A lei de incentivos à cultura é um componente essencial desse sistema. Mas seu sucesso recente não esconde a necessidade de ela ser complementada pela disposição do Estado de investir mais e com maior eficiência na cultura: com critérios mais qualitativos, mas sem risco de qualquer paternalismo.
Por isso, em 1996, o Ministério da Cultura enfrentará outra vez o desafio de fazer aumentar os recursos para investimento direto em cultura, seja por meio do FNC, seja por meio de projetos emergenciais dos responsáveis por nossa vida cultural. Só assim um sistema de financiamento da cultura, adequado às exigências da vida democrática, se consolidará no país.

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