São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O enigma do México

TARSO GENRO

A reunião que testemunhei e participei na cidade do México, entre os dias 16 e 18 de fevereiro, apoiada pela ONU, teve a participação de figuras importantes da academia (Roberto Mangabeira Unger, José Luiz Fiori, Jorge Castañeda) e da política latino-americana, como o ex-ministro Carlos Ominami (socialista, Chile), Ciro Gomes (PSDB, Brasil), Sérgio Ramirez (sandinista, ex-vice-presidente da Nicarágua) e o ex-presidente Itamar Franco.
Teve também a presença de destacados dirigentes de partidos de esquerda, centro e centro-esquerda, como José Dirceu (PT, Brasil), Cláudio Fermin (ex-candidato a presidente pelo partido Ação Democrática, da Venezuela) e Chacho Alvarez (da Frepaso, Argentina), além de outros "dublês" de professor universitário e quadro político, como o ex-ministro de Relações Exteriores do governo Alfonsín, Dante Caputo, e o embaixador do Chile nos Estados Unidos, John Biehl.
O debate proposto foi o seguinte: qual o projeto de reforma do Estado e de desenvolvimento econômico alternativo à política e à economia hoje hegemônicas na América Latina?
Os participantes constataram que, seja qual for a origem das forças políticas que ocupam os governos federais, elas aplicam, em regra, medidas idênticas: privatizações selvagens, políticas "compensatórias" para os pobres -sem pretender incluí-los na sociedade formal-, redução da capacidade indutora e reguladora do Estado, acumulada com a "socialização" das eventuais "perdas" do capital financeiro.
Tal fenômeno vem, ordinariamente, fundado numa nova cultura despolitizante promovida pela maioria dos meios de comunicação, que criam na sociedade a convicção de que o processo de globalização não deixou outra saída a não ser aceitar a exclusão social como uma fatalidade.
A ampla maioria dos participantes constatou que recentemente aumentou a pobreza e o desemprego nos seus países de origem, deterioração que ordinariamente sucedeu a políticas de ajuste.
Outro aspecto relevante foi a verificação de que o "aprofundamento" do modelo, baseado nos princípios da "mão invisível do mercado", exige uma certa uniformidade política que, ou deriva de uma sucessiva cooptação das oposições nos Parlamentos, de arranjos jurídicos que fortalecem a autoridade do Executivo (Argentina) ou de assustadoras intervenções militares (Peru).
Levantaram-se pontos fundamentais para a reconstrução de um projeto de desenvolvimento complementador na América Latina, sobretudo para estabelecer uma nova ordem social integradora dos excluídos na sociedade formal.
Essa nova ordem partiria de um duplo movimento: a conexão entre uma política industrial descentralizada, voltada organicamente para alimentar as economias locais e regionais, e uma reforma financeira e institucional dos Estados latino-americanos.
A nova ordem deveria ser capaz, por um lado, de ancorar a estabilidade da moeda na recuperação da capacidade de financiamento do Estado e, por outro, de dotar o Estado de normas constitucionais que permitam superar os impasses de legitimidade, viabilizando que os governos possam aplicar seus programas, avalizados pela sociedade.
O referendo e o plebiscito seriam instrumentos efetivos de governabilidade. A superação do bloqueio às mudanças, enfrentado por futuros governos de centro-esquerda ou esquerda latino-americanos, tem um duplo desafio. Primeiro: como realizar a aplicação de um programa econômico de crescimento combinado com distribuição de renda quando a "lógica" da globalização exige a inversão de grandes massas de capitais concentrados para integrar a economia nos padrões competitivos pautados pela revolução "digital-informática".
Segundo: como superar a crescente deslegitimação dos Estados tradicionais que, sugados e decompostos (antes) pelas suas direções oligárquicas e (hoje) pelo ideário neoliberal, são incapazes de engajar politicamente a cidadania para compartilhar de um ousado projeto de mudanças.
A reunião do México pode estimular a formulação de um programa alternativo de "frente", cujo resultado -sem que os integrantes dessa frente percam a sua personalidade política ou renunciem aos seus programas de longo curso- situe os respectivos países num novo patamar civilizatório democrático, tanto político como econômico.
Suas bases serão um certo tipo de reforma do Estado, capaz de permitir sua relegitimização, combinando a democracia representativa com a participação direta da cidadania e uma política industrial descentralizada, uma política econômica ousada, apoiada numa reforma fiscal e tributária capaz de recuperar a capacidade financeira do Estado.
A reunião do México colocou a exigência de uma nova resposta, tanto para a esquerda como para o centro -aquela parte que não perdeu o senso de justiça social-, a saber: como combinar os seus horizontes utópicos (para a esquerda socialista) ou sua moderação que leva à passividade (para o centro democrático) com uma política realista, tomada aqui não como capitulacionismo cínico, mas como dimensão de uma política social dotada de eficácia.
Da solução desse enigma poderá emergir um conjunto de acordos de natureza eleitoral na América Latina, que responda também às questões de governabilidade com capacidade transformadora, capaz de fazer emergir práticas de governo que não rezem pelo "consenso de Washington". Seria uma nova etapa histórica no continente, depois do inferno das ditaduras e do inverno do abandono, promovido pela "mão invisível do mercado".

Texto Anterior: DEPOIS DE ANOS; LEI DA VIDA; CONFRARIA
Próximo Texto: A questão do financiamento da cultura
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.