São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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O FUGITIVO

COSETTE ALVES

O fugitivo Samuel Klein é um sucesso comercial. Contou como construiu um dos maiores conglomerados de varejo do Brasil, as Casas Bahia. Com senso de humor, disse: "as Casas Bahia têm que estar sempre em evidência. Seus fregueses têm que rezar e ver a propaganda das Casas Bahia todos os dias".
Tendo apenas o primário, desfaz os mitos e as previsões agourentas dos "especialistas em varejo". Afirma que "não há mau negócio, o que há são maus administradores".
A luta já é parte de sua natureza e a concorrência não o assusta. Sua relação com o consumidor é pessoal e empática. Ele diz não temer a entrada da Wal-Mart no Brasil.
Notei um brilho malicioso e quase brincalhão no seu olhar quando falou sobre a algazarra provocada pela chegada da gigantesca cadeia americana. Considera a entrada de um novo concorrente benéfica para ele e para o país.
Sam Klein, o polonês brasileiro fundador das Casas Bahia, não tem medo de Sam Walton, o americano fundador da Wal-Mart. O segredo da sua segurança é o trabalho.
Aviso aos concorrentes: é difícil concorrer com Samuel Klein!

Como começa a história de Samuel Klein?
Eu sou um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Não esqueço as origens, minha vida na guerra e no pós-guerra. Sou filho de marceneiro, carpinteiro. Meus pais nasceram na Polônia israelita e eu sou um dos nove filhos que eles tiveram. A guerra estourou em setembro de 1939. Eu tinha quinze anos. Em novembro, ia completar dezesseis. A guerra é uma coisa muito ruim, especialmente para nós, judeus.
Por que o sr. acha que os judeus foram tão perseguidos?
Não sei. O que meus pais, avós e bisavós fizeram para carregar tanto ódio, tanta perseguição? O que aparentemente acontece é que somos do Velho Testamento, e os cristãos são do Novo Testamento. Antes do cristianismo, só existia o judaísmo. Os cristãos, pela lógica, vêm do judaísmo. Que culpa tem uma criança recém-nascida ou seus tetravós por serem judeus? Não tem como se condenar uma nação por coisas que aconteceram há 2.000 anos.
Dá para descrever como é a vida em um campo de concentração?
Vou falar toda a verdade para você. Estive dois anos prisioneiro em um campo de concentração. Em 1942, os alemães nos arrancaram de nossa casa com seus fuzis. Fomos levados para uma sinagoga onde já havia uma concentração de judeus. Até lá, estávamos em família, eu, meus pais e meus oito irmãos. Ficamos um dia ou dois num inferno. Muitos gritos, muitos mortos, muitos doentes, um pesadelo. No terceiro dia, tiraram da sinagoga as pessoas que tinham ainda força de trabalho.
Meu pai, meu irmão mais novo e eu fomos escolhidos; os familiares ficaram na sinagoga. Um dos meus irmãos estava descalço, não deram tempo para ele calçar os sapatos quando nos prenderam. Ele voltou para a sinagoga e nunca mais o vi. Os escolhidos foram levados até um campo de trabalho. No outro dia, descobrimos que os que ficaram foram levados para Treblinka, o famoso campo de extermínio.
Não era de concentração nem de trabalho, era de extermínio mesmo. Minha mãe e meus irmãos foram levados para lá. Foram mortos naquele campo...
Como era a vida lá?
Eu fazia mercearia. Dormia em cima de madeira, aquelas militares. Não tinha colchão.
O sr. tinha esperança de escapar?
Tinha esperança, sim. Meu sexto sentido me dizia para ter. Consertava fechaduras, entrava nos lugares onde tinha comida. Tinha que sobreviver para me libertar.
A grande escapada Como conseguiu escapar?
Fugi no transporte. Isso foi em julho de 1944, quando os russos entraram no último campo em que eu tinha ficado. Os militares haviam nos organizado para sair do campo. Colocaram a gente a pé na estrada.
Só que não havia lugar na estrada, então resolveram nos transportar pelo meio do mato. Os próprios alemães começaram a fugir, porque viam que os russos os pegariam. Meu pai estava comigo. Eu tinha um furúnculo na perna e senti que, se ficasse por último, seria morto. Então, pulei para ficar em penúltimo. Percebi que não ia mais aguentar. Andava numa perna só.
Meu pé estava inchado. Estava exausto e com fome. Então, cheguei até os soldados e falei: "dá licença de fazer necessidade?" Eu entrei no trilho, na beira da estrada, baixei as calças, fiz o que tinha que fazer, e, depois, fui me afastando. E eles se esqueceram de mim. Eu me afastei.
Eles foram embora. Meu pai não conseguiu fugir comigo. Passou por mais sete campos de concentração. Fui reencontrá-lo anos mais tarde num hospital, pesando 45 kg. Se eu não tivesse fugido, iria passar por mais seis ou sete campos. Não sei se conseguiria sobreviver.

O sabor da liberdade
Dá para se lembrar dos primeiros momentos em liberdade?
Naquele momento, já estava livre. Descansei no trigo, longe da estrada, sozinho e livre. De longe, ouvi um cachorro latindo. Fui ao encontro do latido. Vi poloneses que levavam as vacas para fora de casa, antes de que os alemães colocassem fogo em tudo. Comecei a me manter nesse mato, junto com mais três fugitivos. Tirávamos os lanches dos meninos que cuidavam das vacas e fugíamos, para que eles não nos denunciassem. A ocupação ainda era alemã.
Qual foi a primeira atividade que o sr. desenvolveu em liberdade?
Fui para uma cidade pequena que já havia sido libertada dos alemães. Foi montado um comitê de judeus, e um oficial russo veio providenciar comida e bebida. Eu estava livre. Podia fazer o que bem entendesse...
O sr. acha que se libertou só porque teve coragem para fugir?
Coragem, eu sempre tive, para trabalhar e ajudar a criar os irmãos. Mas a coragem veio porque percebi que não tinha mais nada a perder.

Os sobreviventes
Quem sobreviveu da família?
Quase ninguém. Voltei para a aldeia onde eu havia nascido. Alguns dias depois, uma de minhas irmãs voltou da Rússia. Ela chegou na estação e perguntou se alguém havia sobrevivido. Falaram: "tem um rapaz, filho do marceneiro". Ela me encontrou e juntou-se a mim.
Tinha uma trouxa de roupas e algum dinheiro russo. Procuramos sair de lá, porque os poloneses também tinham ódio de nós, judeus poloneses. Essa cicatriz aqui na minha cabeça, foi na escola, eu tinha dez anos. Um colega pegou um pau e rachou minha cabeça. Pode-se ter uma idéia do ódio e da intensidade da perseguição. O que nós fizemos para nos odiarem tanto?
Nessa época, o sr. já havia retomado o trabalho?
Logo em seguida à fuga, trabalhei numa cidade pequena, numa padaria. Mais tarde, fui para uma cidade maior, onde encontrei um irmão meu. Voltamos para nossa aldeia, onde estava minha irmã. Depois, decidimos sair dali, eu, meu irmão e minha irmã... Depois, ficamos sabendo de mais uma irmã, que tinha fugido do trem e sido levada para trabalhos forçados na Alemanha, como cristã.
Meu irmão foi buscá-la e fomos, nós quatro, para a Alemanha. Encontramos nosso pai em um hospital e nos reunimos em Munique, o que havia restado da família. Recomecei a viver, negociar vodca com russos.

O comerciante
Foi ali que começou o trabalho no comércio?
Comecei no comércio ainda criança. Além de trabalhar como marceneiro e carpinteiro, ajudava minha mãe, que tinha uma venda. Mas costumo brincar que é com os russos que passei a ser comerciante, "comprar por cem e vender por cento".
Senhor Klein, o que é vender?
Eu acho que é uma simpatia. Ganhar simpatia para começar a negociar. Mas, primeiro, ganhar simpatia com vizinhos, com funcionários. Ganhar simpatia é bom e não custa nada.
Quando descobriu o Brasil?
Achei que, se ficasse na Alemanha, não teria futuro. Eu tinha uma tia no Rio de Janeiro, que está com 95 anos agora. Eu já tinha juntado alguns mil dólares, então decidi ir para o Brasil. Mas só consegui visto para a Bolívia.
Cheguei na Bolívia, eu, minha senhora e meu filho. Em 1952, começou uma revolução em La Paz; quase morri dentro de casa. Sair de uma morte, procurar outra... Fui até o consulado e consegui visto para o Brasil. Vim sozinho. Meus primos diziam: "no Rio não tem nada, vamos para São Paulo". Fui para São Paulo e, em 1952, chamei minha mulher e meu filho Michel.
Como foi o começo em São Paulo?
Cheguei a São Paulo com minha senhora, meu filho e seis mil dólares. Pensei: "não sei falar português, que vou fazer?" Todo mundo me dizia: "se quiser trabalhar, você vai bem, mascateando". Não entendi, pois desde criança eu já trabalhava.
Lembro-me de um fato que aconteceu comigo: pela nossa religião, sábado não se pode trabalhar; só se pode começar quando se vêem três estrelas no céu. O sábado termina de noite. Eu estava procurando estrelas; quando achei as três estrelas, comecei a gritar "pai, pai, podemos começar a trabalhar!"
Comecei mascateando. Comprei uma charrete, um cavalo e comecei a vender na rua. Vendi cobertores durante cinco anos. Ganhei dinheiro, fiz freguesia e a cobrança foi aumentando. Abri a primeira Casa Bahia em 1960, aqui em São Caetano. Em 1958, tinha alugado a casa e começado a levar os fregueses para lá. Eu tinha vendedores na rua que me ajudavam. Já não era mascatear, já era venda certa.

O invencível
O sr. vendia à vista ou a prazo?
Só a prazo.
A mulher ajudava o sr.?
Sempre. Ela registrava cada venda que eu fazia: onde, número, quantidade, quantas prestações, crédito, débito. Eu vendia e ela controlava.
Como o sr. encara a chegada da Wal-Mart ao Brasil? Depois de tantas batalhas, como enfrentar essa?
Estou tranquilo. Nós estamos bem. Não me abala essa chegada. É um negócio diferente, porque a Wal-Mart vai pegar a classe B, também. Ela é muito forte em comida e limpeza. Tem alguns itens meus, mas muito poucos. A minha freguesia não vai atrás. Eles abriram uma loja em Santo André e não houve nenhuma interferência no faturamento. Nenhuma, nenhuma.

Aprendendo a andar
Quais os mandamentos das Casas Bahia?
Atender bem o cliente, não explorá-lo, acompanhar qualquer concorrência. Tratar bem o cliente, mesmo que ele pague com dez dias de atraso: nos primeiros dez dias, não cobramos juros. "Dedicação total a você" é o nosso slogan. Nós fazemos tudo para o freguês, e isso tem reflexos. Outros empresários e a Wal- Mart não sabem medir isso.
Com a entrada da Wal-Mart, a relação com o fornecedor não fica prejudicada?
O fornecedor fica muito menos mercenário.
Qual a opinião do sr. sobre os investidores estrangeiros? Dizem que outras lojas interessadas no varejo também vêm para o Brasil.
Acho válido abrirmos portas para o mundo. Nós temos gente, vontade e necessidade de trabalho, só não temos dinheiro e tecnologia. Temos que abrir portas para capital de risco, trazer indústrias e mais impostos para o país. O Brasil é uma criança que começa a andar, do Real para cá.
Em que colocação está sua empresa?
Dentro das empresas do nosso ramo, estou em terceiro ou quarto.
O sr. tem medo da concorrência?
Concorrência é a melhor coisa que tem; sem ela, a gente se acomoda.

Som para a empregada
O sr. tinha a meta de vender R$ 1 bilhão em 1995. Conseguiu?
Foi R$ 1,5 bilhão, incluindo só um mês das lojas da Casa Garson. A compra da Casa Garson, em novembro passado, não foi só um negócio. Foi estratégia para tomar conta de mais um pedaço bom do mercado. O Ponto Frio estava sozinho no Rio.
O sr. teve uma venda de R$ 1,5 bilhão. E o lucro, quanto foi?
Não fechamos ainda. Deve dar uns R$ 30, 40 milhões. Meu negócio não é varejo, é atacado mesmo. Para mim, 1995 foi uma coisa fora de série.
Qual a explicação?
Para a classe baixa, o dinheiro começou a ter valor. Até minha empregada comprou um som. A revolução veio para essa gente. Encontrei o meu segmento.
Antes do Real, como é que o sr. mantinha a clientela?
Consegui, mas não era como é agora. 30 dias antes do Plano Real, faturávamos US$ 30, 35 milhões. Em julho, foi para US$ 87 milhões.
O sr. acha que as margens do varejo são pequenas?
São razoáveis. Tem que saber comprar, girar mercadoria o mais rápido possível, ter tamanho para chorar os preços, gerar uma aquisição de mercadorias e vender bem vendido...
As contas do freguês As importações ajudam?
Ajudaram. Hoje, não.
Por quê?
Primeiro, porque agora nós temos produtos; antes, não tínhamos. Hoje tem produção e tem preço. A importação, para nós, não vale nada.
As importações são benéficas para o país?
Acho que sim. Por causa da tecnologia moderna.
Qual a razão das lojas estarem mais concentradas em São Paulo?
Porque não é grande o faturamento fora de São Paulo. Temos lojas no interior de São Paulo, em Minas e, neste último ano, no Paraná. Mas a Grande São Paulo é quem manda.
Os juros altos estão atrapalhando os negócios?
Acho que o que atrapalhou foi a concordata da Casa Centro. Os bancos desconfiam de todos nós depois disso. Hoje, se você não tem capital de giro, sofre, porque trabalha para os outros e não tem como reajustar preços. Com a inflação, você pagava mais caro, mas vendia mais caro.
Quanto as Casas Bahia investem em propaganda?
Em média, 3% do seu faturamento. Vale a pena.
Qual a propaganda mais eficiente?
Tudo junto. Rádio, jornal, televisão. Temos que estar sempre em evidência. Os fregueses têm que rezar e olhar a propaganda das Casas Bahia, todos os dias.
O que o sr. considera um bom ou um mau empresário?
Mau empresário é o que não cuida de seus negócios. Negócios sempre são bons; ruins são os empresários que não sabem administrá-los.
Quais os problemas mais urgentes para serem resolvidos no Brasil?
Empregos, escola, saúde. Olha, tem tanta coisa para se fazer neste Brasil.
O sr. já trabalhou com o Pelé?
Sim, em campanhas publicitárias. Ele é simpático, me chama de "paizão"... Os nomes de Pelé e das Casas Bahia ficaram ligados na mídia.

Topa tudo
Porque o nome "Casas Bahia"?
É uma homenagem aos meus primeiros fregueses. Quando eu mascateava, os clientes eram nortistas que vinham em paus-de-arara; e nortista é sempre chamado de baiano.
Tem novos investimentos?
Inauguramos em Jundiaí, em janeiro, o maior depósito da América do Sul, com 136 mil m2 cobertos. Vimos depósitos assim nos EUA.
Algum novo negócio?
Não, nada de muito especial. Mas, aparecendo algum negócio, a gente topa. Como as lojas da Casa Garson. O Rio é um segundo mercado.
Qual o momento mais marcante da vida profissional?
O Plano Real. Sou fã do presidente Fernando Henrique e do Plano Real. Grande homem. O Brasil precisava, e o povo merecia.
Em alguns momentos o sr. sente medo na sua empresa?
Não. Ninguém quer ir embora, mas um dia a gente vai partir. Eu estou bem, graças a Deus, meus filhos já trabalham aqui e gostam. Estão preparados para a sucessão.
O sr. acredita na sorte?
Acredito no trabalho.

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