São Paulo, quinta-feira, 29 de fevereiro de 1996 |
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O IPC
GERARDO MELLO MOURÃO Entre as frases da semana selecionadas pela Folha está uma do cantor Lobão segundo a qual, depois do caso Collor, a política brasileira foi contaminada por uma espécie de catapora de moralismo endêmico. É o caso do IPC, o órgão legal e constitucional que, a exemplo do que ocorre em todos os países democráticos do mundo, provê um mínimo de seguridade social para os membros do Congresso.E provê com muito menos largueza do que os Parlamentos da França, da Inglaterra, dos EUA, da Itália, da Alemanha, do Japão e assim por diante. Dentro e fora do Congresso vociferam os janízaros de uma duvidosa moral com arroubos intimoratos, mas nem sempre intemeratos, contra os pecúlios atribuídos a deputados e senadores. As increpações -algumas sinceras, mas todas desinformadas- fazem praça de um ressentimento freudiano semelhante ao que denuncia como exorbitantes os subsídios dos parlamentares (menos de R$ 5.000 líquidos). Em sua "História Universal da Infâmia", Jorge Luís Borges lembra que pior do que a mentira é a depravação da verdade. Denunciar como exagerados ou descabidos os subsídios e o seguro social dos parlamentares é mais do que uma injúria: é uma verdade depravada que deve ser catalogada entre as conspirações conscientes ou inconscientes armadas, de tempos em tempos, contra a instituição parlamentar e, pois, contra a democracia. Meu mestre Nietzsche ensina que sempre que a moral não é tratada como um valor teleológico da ontologia ou da existência, para se transformar num fenômeno eidético (não confundam com aidético), deixa de ser a "moral" propriamente dita para se transformar naquilo a que ele chama de "Moralina" -uma contrafação ou caricatura da moral propriamente dita. Para julgar o IPC seria bom que se contasse sua história. Sou eu mesmo testemunha e até protagonista menor de seu nascimento. Não havia, até 1963, qualquer órgão de previdência parlamentar. Havia a chamada "mútua", uma sociedade civil, presidida pelo deputado Raul Pila. Funcionava como uma espécie de "vaquinha": cada deputado recolhia um dia de subsídio, que era entregue à "mútua". O doutor Pila guardava o bolo em conta especial, a ser distribuído à viúva do deputado quando de sua morte. Zerado, então, o modesto consórcio, fazia-se novo bolo até o próximo defunto. As contribuições eram voluntárias e aleatórias. Houve em 1963 quatro casos dolorosos: a morte de quatro parlamentares cujas famílias não dispunham nem sequer do dinheiro para os funerais. O deputado Monsenhor Arruda Câmara, com o apoio de Raul Pila, tomou a iniciativa de criar uma previdência institucional para os congressistas. O projeto recebeu a aprovação unânime da Câmara e a instituição foi criada nos moldes de congêneres européias. Lembro-me ainda do dia da sanção da lei que criou o IPC, pelo presidente João Goulart. O presidente recebeu uma comissão de parlamentares para a assinatura solene do ato. O doutor Pila, que nunca dera um bom dia ao presidente Jango, passou-lhe um telegrama de congratulações pela sanção da medida que assegurava um mínimo de segurança e dignidade à vida profissional dos legisladores. Eu mesmo, então deputado, fui solicitado por Arruda Câmara, que tinha por princípio nunca entrar num palácio de governo, a obter a audiência presidencial, o que fiz por intermédio de meu sogro, o senador Barros Carvalho, líder do governo no Senado. Assim nasceu a lei. Limpa e das mãos mais limpas que já houve no Congresso: as de Raul Pila e de Arruda Câmara. Monsenhor Arruda Câmara, pernambucano de 400 anos, descendente dos bandeirantes nordestinos da Casa da Torre e daquele outro Arruda Câmara, que proclamara a república no famoso Areópago de Goiana, ainda nos dias da colônia, era jurista consumado, doutor "in utroque" pela Gregoriana e foi honrado pela Santa Sé com os títulos de Protonotário Apostólico e Prelado Doméstico do Papa. Era o que se podia chamar de varão de Plutarco. A tal ponto que era o único deputado, mesmo nos difíceis dias dos primeiros tempos de Brasília, que se recusava a usar os telefones da Câmara, pois eles eram pagos pelos cofres públicos. É uma injúria à sua memória supor que fosse capaz de engendrar um instituto imoral. Discípulo de dom Sturzo, foi ele ainda o fundador do PDC no Brasil. Não é verdade que um deputado se aposente com rendimentos integrais aos 50 anos. Seria necessário que ele tivesse sido deputado ainda menor de idade, o que não pode ocorrer. Um deputado que recebe a taxa proporcional do pecúlio acumulado por sua contribuição e pela contribuição patronal de praxe não é um deputado aposentado. Não tem nem sequer os direitos previdenciários atribuídos a qualquer profissional. Sua seguridade social está limitada a míseros R$ 2.400,00 por ano, em caso de doença. Comete um erro de consequências imprevisíveis quem capitula diante de clamores demagógicos vindos das ruas ou de entidades estranhas ao corpo parlamentar, deferindo-lhes o direito de legislar dentro do Parlamento. Hoje é o IPC. Amanhã, só Deus sabe o que será. Seria mais honesto entregar as chaves da Câmara aos líderes sindicais, declarar a falência da representação parlamentar e instituir no Brasil o regime das Câmaras Corporativas, fundadas por Mussolini, preconizadas por Manuilescu e por Plínio Salgado. Assim nosso bom Vicentinho, mais o Medeiros e outros menos votados poderiam acabar com o IPC e, quem sabe, com as aposentadorias especiais de jornalistas, militares, juízes e até com a desse senhor com sua cara sinistra de sacristão presbiteriano, o sr. Reinhold Stephanes, que se aposentou com quarenta e poucos anos e agora quer reformar a Previdência. 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