São Paulo, quinta-feira, 29 de fevereiro de 1996
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Pérolas

OTAVIO FRIAS FILHO

"Pérola", a peça de Mauro Rasi que estréia hoje em São Paulo, é uma preciosidade no seu gênero. Sem receio do melaço das emoções mais sentimentais, o espetáculo transita da ironia diante das fraquezas cotidianas para um perdão de tal forma amplo e generoso, derramado sobre palco e platéia, que aquelas mesmas emoções, antes baratas, se transfiguram.
Do espantoso prosaísmo da Bauru dos anos 50, de esquetes que descongelam um passado familiar enterrado na memória, o autor levanta um panorama que ressoa o realismo do teatro americano, de Arthur Miller ou Tennessee Williams; sem a altitude dramática desses dois, "Pérola" recompensa o público com um desfecho de pura felicidade.
É a inclinação pelo realismo o que afasta o público do teatro, como de qualquer forma de arte, porque o gosto da maioria das pessoas é estacionário, não muda nem ao longo da vida nem no decorrer das gerações. Elas querem histórias claras e emoções compreensíveis; querem, se possível, humor e amor, além de um pouco de angústia antes do final feliz.
Elas não querem "compreender" alguma coisa, nem "passar por uma experiência estética" ou ver aparências serem desmascaradas, mas viver, por algumas horas, num mundo de ilusão, numa vida fictícia ao mesmo tempo mais intensa e inofensiva que a vida real. Não é isso o que diz o público das telenovelas, com seu gosto pelos enredos repetitivos?
Foi com a arte moderna que o artista deixou de cultivar essa opinião média, ainda que fosse para suplantá-la, e passou a ser um criador de formas puras, abstratas e inéditas. Não por acaso, esse tipo de artista se enraizou melhor nos gêneros tradicionais, como o teatro, à medida que eles cediam a prerrogativa do realismo ao cinema.
Foi aberto, assim, um abismo entre interesse estético e interesse médio, aquele preso a experimentações cada vez mais estéreis, este sempre fiel ao realismo narrativo. De tempos em tempos, porém, uma obra proveniente do campo "médio", como essa peça de Mauro Rasi, reaproxima magicamente os extremos, pois "Pérola" só parece uma novela.
Um dos aspectos positivos da desorganização de critérios da nossa época é que, não tendo mais um cânone, vivemos um multiculturalismo de fato: todos os gêneros e estilos coexistem, misturados. Nada impede que uma comédia realista possa exercer uma influência vivificadora tanto sobre gêneros mais "baixos" como mais "altos".
Além disso, como a cultura brasileira é rarefeita e fraturada por lacunas, ela tem de se fazer no presente ao mesmo tempo em que "constrói" artificialmente seu próprio passado. Carlos Heitor Cony disse há pouco que, enquanto não recensear à exaustão a sua história, um país não pode ter literatura forte. Algo assim acontece com "Pérola".
Seja no espírito naturalista, seja nas reminiscências do seu conteúdo, ela fecha um vazio na nossa memória. Ao prestar contas do pai, no caso de Cony, e da mãe, no caso de Rasi, o autor liquida o passivo da sua conta pessoal para transferi-lo a nós, com sinal modificado, na forma de um fio que se soma ao feixe ainda fraco da nossa evolução.

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