São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ser ou não ser

JOSUÉ MACHADO

O historiador e são-paulino Bruno Bontempi, de São Paulo, entusiasmou-se com um textículo analítico desta Folha sobre a novelal personagem Sarita Vitti:
"Sarita Vitti está cada vez mais longe de qualquer semelhança com uma drag queen da vida real. Não tem glamour e muito menos humor, fundamentais em qualquer drag queen.
(...) Também não realiza a figura da mulher como fazem os travestis. É um rapaz de voz grossa, sempre pronto pra (sic) agredir os homens que têm medo de se aproximar dela e sempre disposta a dar bons conselhos para suas vizinhas.
Sarita Vitti é apenas um personagem híbrido. Não é homem, não é mulher, não é drag nem travesti."
Impressionado com certa confusão e com a indecisão de gêneros, Bruno comenta em sua camisa tricolor:
"1. O rapaz quer agredir quem tem medo de se aproximar de sua voz grossa?
2. Será que só o lado masculino de Sarita é assim agressivo, e o feminino, "sempre disposta", até dá bons conselhos?
3. Será que é por Sarita não ser "homem nem mulher" que o drag-computador ficou em dúvida quanto às questões de gênero?
Ó tempos, ó costumes!"
"Ó tempos, ó costumes!" é o que dizia o pobre Cícero, criticando os picaretas da época, antes que lhe cortassem a cabeça e lhe espetassem a língua. Depois seria difícil.
Bontempi poderia ter sido mais rigoroso e apontado a falta de vírgulas que deveriam isolar a oração subordinada adjetiva explicativa "que têm medo de se aproximar dela".
Já que falamos nisso, convém lembrar que as orações adjetivas equivalem obviamente a adjetivos, e não a melões, e vêm ligadas à original quase sempre pelo pronome relativo "que" ou pelo advérbio relativo "onde" (= em que). Podem ser explicativas ou restritivas.
As explicativas, como explicava a Madre Superiora, atribuem uma qualidade inerente ao substantivo a que se referem ou acrescentam-lhe uma informação. Podem ser cortadas sem prejuízo da oração principal. Aparecem separadas por vírgulas que marcam pausas bem definidas:
"O cachorro, QUE É MORTAL, tem quatro patas."
"O deputado, QUE É HONESTO, defende seus eleitores."
As restritivas restringem ou limitam o significado do termo a que se referem e não podem ser eliminadas sem prejuízo da oração principal. Não vêm entre vírgulas e são enunciadas sem pausa, a menos que o enunciador sofra de males respiratórios.
"Cão QUE MIA não morde."
"O país ONDE NASCESTE ainda será grande com a ajuda da globalização neoliberal."
"O deputado QUE É HONESTO defende os eleitores."
Claro que o último exemplo, com a evidência de que o deputado pode ou não ser honesto, não passa de brincadeira. A oração adjetiva restritiva, não separada por vírgulas, indica que pode haver deputados desonestos -raciocínio absurdo que sequer deveria ter sido enunciado. Um chiste infeliz. Agora é tarde.
Pelo pescoço
A nota de 13 linhas do jornal recebeu o seguinte título: "Cinto de segurança não deve apertar pescoço."
Esse é um título surpreendente, qualidade que os títulos devem ter sempre que possível e nos limites da verdade para agarrar o leitor pelo pescoço. Quando todos estávamos certos de que os cintos de segurança dos automóveis foram criados exatamente para apertar o pescoço das vítimas, vem o redator com a revelação. Vivendo sempre se aprende.

Texto Anterior: Alunos de SC terão carne de sol como merenda
Próximo Texto: O Estado e seu papel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.