São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
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Receita de hipotenusa

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Deve acontecer com muita gente: acordei com uma frase na cabeça, título de uma crônica publicada nem mais sei onde: Sócrates e o porco. Era um comentário àquela constatação de que mais vale ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito.
O erro da frase é considerar Sócrates insatisfeito. O porco, aparentemente, vive satisfeito até o momento em que vira presunto, costeleta e lombinho. Cada vez mais acredito que Sócrates (na horizontal) e Jesus de Nazaré (na vertical) deram as duas linhas que formam o triângulo básico da aventura humana, cabendo a cada um de nós lançar a sua hipotenusa individual.
Falo em "Jesus de Nazaré" e não em "Jesus Cristo", que aos poucos está se tornando apenas uma interjeição para os americanos.
Boa coisa não podia vir de Nazaré, mas veio Jesus e foi personagem de um auto pastoril cuja beleza deve ser colocada na perpendicular de Sócrates. Como é socrática a introdução para ensinar o Pai Nosso: "Quando orardes, não useis muitas palavras". A ligação do absoluto com o relativo só necessita do movimento, do ir e, se possível, chegar.
Muitos autores, ateus alguns, religiosos outros, já acentuaram o caráter socrático dos ensinamentos de Jesus de Nazaré. O Pai Nosso é um exemplo: na única oração que Ele ensinou não há espaço para a palavra "eu". É o pai nosso, o pão nosso, as nossas ofensas, os nossos ofensores, sempre o plural do homem: nós (eu, ele, você, todos).
Sócrates foi anterior a Jesus, dividiu a filosofia em antes e depois dele. Jesus fez mais ou menos a mesma coisa, mas já incorporando o mito helênico do Cristo -até certo ponto, aquilo que poderíamos chamar de "um Sócrates metafisicamente satisfeito", o que não deixa de ser um paradoxo.
Depois de Sócrates e Jesus, acho que a única novidade na história universal foi aquela paradinha introduzida por mestre André na bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel.

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