São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Vertigem wagneriana

LORENZO MAMM

O musicólogo e semiólogo Jean-Jacques Nattiez, há alguns anos, publicou o ensaio "Wagner Androgyne" (Bourgois, 1990). Sua tese central era que a produção de Wagner pode ser lida como uma contínua fusão de opostos (masculino e feminino, poesia e música, teoria e práxis) em busca de uma unidade mística originária. Nattiez é um dos pais da semiologia musical, mas, ao tratar da obra de Wagner, sentiu a necessidade de abandonar o terreno da análise estrutural e se arriscar numa interpretação de conteúdos, tentando uma contaminação com práticas estranhas ou até opostas à semiologia: psicanálise, hermenêutica.
De fato, a última parte do ensaio é dedicada à proposta de um novo paradigma metodológico, bem mais amplo e eclético, formulado no corpo-a-corpo com a obra wagneriana. O autor de "Wagner Androgyne" não é o primeiro a modificar radicalmente seu pensamento para dar conta da personalidade de Wagner. Quem se aproxima do autor do "Tristão", ao que parece, queima-se.
O caso mais famoso é o de Nietzsche, que construiu sua obra inteira de acordo com, ou em reação a Wagner. Roger Hollinrake ("Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo", Zahar, 1986) tentou mostrar como a aspiração nietzschiana a uma filosofia sem conceitos deriva dos princípios wagnerianos de narração mítica e de estruturação musical baseada numa rede de motivos recorrentes. "Assim Falou Zaratustra" seria, ao mesmo tempo, a confutação filosófica e a paráfrase literária da "Tetralogia" e do "Parsifal".
Em Nietzsche e em Nattiez, Wagner despertou uma tendência, digamos assim, desconstrutiva. Há porém casos opostos, e bastante prestigiosos: na abertura de "O Cru e o Cozido", Lévi-Strauss aponta Wagner como principal inspirador de sua análise estrutural dos mitos. Ao dissolver sua abordagem estruturalista no contato com Wagner, portanto, Nattiez parece obedecer a uma espécie de predestinação, bem ao gosto wagneriano -como se a semiologia estrutural sucumbisse ao retorno de um "leitmotiv" anunciado no começo e presente, ainda que recalcado, durante todo seu desenvolvimento.
Em termos mais objetivos: Wagner levantou a hipótese de um nível originário da linguagem, em que poesia e música, palavra e som, idéia e sensação seriam inseparáveis e indistinguíveis entre eles. A hipótese não era inédita -Rousseau já a formulara-, mas Wagner acreditou que essa forma originária de expressão pudesse ser revitalizada por artistas e pensadores e que pudesse substituir, em perspectiva, as modernas formas de pensamento conceitual. De protolinguagem transformou-a em ultralinguagem, linguagem do porvir.
O distanciamento radical dos estruturalistas para com seus objetos não se parece em nada com o estado de contínua exaltação que caracteriza o estilo wagneriano. Mas compartilha com esse a tentativa de manipular palavras, formas linguísticas, narrações independentemente de seu conteúdo, como motivos dentro de uma estrutura musical.
Retomando a famosa distinção nietzschiana, Lévi-Strauss representaria, nesse sentido, a cristalização apolínea do fluxo arrebatador de Dioniso-Wagner. Racionalizou e tornou transparente o que em Wagner era exaltação e embaçamento proposital da capacidade de crítica. E todavia, ou talvez justamente por isso, uma análise estrutural de Wagner é praticamente impossível. O estruturalismo não pode dissecar o mito que está na origem dele próprio.
Uma abordagem hermenêutica, que procure as intenções e os significados atrás das formas, não é mais bem-sucedida. Wagner parece justificar qualquer interpretação: sua enorme produção literária e teórica (maior, talvez, em número de páginas, que a própria produção musical) é tanto marcante quanto confusa. Nem a idéia de drama musical, que deveria estar no centro de sua reforma estética e moral, encontra uma definição satisfatória nesses textos.
Na realidade, Wagner não possui uma teoria orgânica, mas apenas justificativas teóricas para as obras que vai produzindo. Retoma, modifica e manipula suas idéias segundo a necessidade do momento. O mesmo tratamento é reservado aos acontecimentos de sua vida, em seus numerosos escritos autobiográficos: todos são vistos como premonições ou reminiscências em função de um enredo nunca plenamente revelado, a visão de si próprio como artista revolucionário e herói civilizador. Durante a vida inteira, e com todos os meios, Wagner buscou se tornar uma personagem wagneriana -esforço, aliás, bastante bem-sucedido.
O lançamento recente de "Wagner: um Compêndio", pela editora Zahar, levanta um outro tipo de problema. É um produto típico da musicologia anglo-saxônica, que sempre se sentiu à vontade nessa forma de organização da pesquisa. Dirigidos para estudantes e amadores sofisticados, os compêndios da escola inglesa procuram reunir o maior número possível de informações sobre o assunto, numa linguagem clara e concisa. Costumam conter listas exaustivas de fontes, catálogos comentados das obras, cronologias e glossários. Artigos sobre temas específicos enfrentam questões concretas como, por exemplo, os instrumentos utilizados na época, as influências detectáveis em determinada obra ou grupo de obras, a história da recepção crítica do compositor. Vez ou outra, o compêndio inclui a análise de uma composição.
Expressão de um sofisticado empirismo crítico, esses volumes privilegiam, em linha geral, a coleta especializada dos fatos, em detrimento das leituras de grande alcance e das interpretações ousadas. São instrumentos indispensáveis para quem trabalha na área, e é bom saber que a mesma editora está preparando o lançamento de outros dois compêndios, sobre Beethoven e Mozart. No entanto, a mentalidade neopositivista que está por trás deles, que acredita na possibilidade de delimitar os fatos com um grau razoável de aproximação e que busca uma sempre maior especialização e divisão do trabalho crítico, parece a menos adequada a refletir o anseio wagneriano para uma contínua fusão e confusão de todos os níveis de expressão.
É verdade que uma corrente empirista de estudos wagnerianos existe, e é responsável por muitas contribuições importantes. Esse compêndio, em particular, é repleto de informações e esclarecimentos preciosos, que sem dúvida devem ser preferidos à fumaça retórica e à repetição de clichês que caraterizam muita literatura wagneriana. Mas um objeto escorregadio como Wagner não se deixa cercear com facilidade por um critério pretensamente objetivo. Algo se ganha, mas muito, necessariamente, fica de fora. Para Barry Millington, o musicólogo que organizou esse compêndio, Wagner é um assunto como qualquer outro, apenas mais amplo. O problema, portanto, será alcançar uma abrangência que dê conta de um horizonte ampliado e contar com uma especialização ainda mais minuciosa. O número de colaboradores é particularmente amplo (dezoito nesse volume); o esquema da pesquisa muito articulado (quinze seções, a maioria subdividida em várias subseções de autorias diferentes).
Se algo da vertigem wagneriana permanece nesse volume, ela se encontra na quantidade e variedade dos assuntos tratados: "Crenças Religiosas", "Gostos Literários", "Wagner e os Gregos", "Wagner e os Judeus", "A Idade Média de Wagner", "Wagner, os Animais e a Ciência Médica Moderna", para citar apenas alguns dos títulos da seção oitava, "Opiniões e Perspectivas". O objetivo dessa grande estrutura a mosaico é limpar cada faceta da personalidade wagneriana de todas as deformações e incrustações que se superpuseram a ela (às vezes por vontade do próprio compositor). Desse ponto de vista, a seção sétima, "Mitor e Lendas", e o último capítulo da sexta ("Wagner como Bode Expiatório"), ambas assinadas pelo organizador, são exemplares: trata-se de textos dedicados especificamente a verificar clichês e desvendar inverdades relativas ao compositor. Como se, tendo secionado a figura de Wagner em ramos de atividade e formas de expressão, sobrasse um resquício meio amorfo: o mito que foi construído, ou que ele próprio construiu sobre ele mesmo.
Cabe repetir: a quantidade de informações que esse livro contém é preciosa, insubstituível. Quem quiser abordar o assunto deve necessariamente passar por elas. Em "Wagner: um Compêndio" se encontra, esmiuçado até o mínimo detalhe, o Wagner sublime compositor, grande regente, escritor significativo e péssimo filósofo. Não se encontra o Wagner feiticeiro, o Wagner intoxicador, o Wagner neurose (todas expressões de Nietzsche), o Wagner que embaralha as cartas e que seduz. O leitor não está dispensado da leitura dos ensaios maravilhosamente arriscados e genéricos de Nietzsche, Thomas Mann, Theodor Adorno, Cari Dalhaus. Depois disso, se quiser, desintoxique-se com esse ótimo, competente e sadio compêndio.

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