São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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A encruzilhada da esquerda

FÁBIO WANDERLEY REIS

A partir de perspectivas marcadamente distintas, duas novas revistas, "Esquerda 21" e "Crítica Marxista", ambas em seu segundo número, tentam constituir-se em resposta, a partir de perspectivas marcadamente distintas, às dificuldades da esquerda no novo cenário mundial e nacional.
"Esquerda 21" é uma publicação concebida e dirigida por parlamentares, todos eles supostamente de esquerda, apesar de matizes vários nas biografias, trajetórias e filiações partidárias. Trata-se de publicação semi-"oficial", com direito a lançamento em evento promovido na Câmara dos Deputados, que contou com a devida presença de ministros do governo e de autoridades do Congresso nacional. Como indicado pelo título alusivo ao século que se avizinha, a orientação a que corresponde a revista pretende ser a de uma esquerda "contemporânea e construtora do futuro", nas palavras da carta do editor do número inicial, além de comprometida com a democracia e com "a construção dos novos paradigmas" que a revolução técnico-científica exigiria.
Já "Crítica Marxista" talvez se exponha, por algumas de suas características mais nítidas, a ver-se alcunhada, no contraste com a auto-imagem da publicação parlamentar, de "Esquerda 19". Marxista sem prefixos ou qualificações, seu manifesto de lançamento, no clássico tom de denúncia marcado por palavras candentes (a "impostura" reativada, a "virulência" da reação, a concentração "brutal" de poder, a miséria que "devasta"...), "relembra" que o marxismo continua sendo o instrumento teórico decisivo e insubstituível, aponta o caráter de "tributárias do imperialismo" a ser encontrado não somente nas panacéias do neoliberalismo, mas também na experiência social-democrata, fustiga o "pretenso e mistificador valor universal da democracia" e reafirma "a possibilidade histórica da revolução" e do "fim da exploração capitalista".
Naturalmente, qualquer contribuição nova ao debate de idéias é bem-vinda. É difícil dizer, porém, qual das duas publicações é mais expressiva -mais melancolicamente expressiva, sem prejuízo da generosidade dos motivos e intenções dos responsáveis- dos embaraços e dificuldades com que a esquerda se vê confrontada. A abertura que caracteriza a postura geral de "Esquerda 21" certamente representa um traço positivo quando contrastada com a caturrice de "Crítica Marxista". Mas as duas posições desse contraste se relacionam equivocamente com outros aspectos.
"Crítica Marxista", apegada a objetivos de óbvia inviabilidade no futuro que se pode discernir, tem estilo mais "acadêmico". Adotando perspectiva de longo prazo, ela se dirige de maneira mais elaborada (sobretudo, mas não só, nos trabalhos de colaboradores internacionais, bem como numa seção de resenhas de livros) a um punhado de temas cujo exame apropriado seria sem dúvida importante: capitalismo, democracia e revolução, modernismo e pós-modernismo, hegemonia burguesa e cultura de massas, acrecentando-se a própria teoria marxista como instrumento analítico. A lamentar, naturalmente, o fato de que a fôrma doutrinária costume marcar mais profundamente do que seria de desejar a discussão de tais temas -e certa tendência a ignorar, em assuntos relevantes (com destaque para a questão da democracia), as contribuições às vezes decisivas da bibliografia mundial alheia à ortodoxia a que a revista se filia.
Por sua parte, desprovidos da referência distintiva ao socialismo, os esquerdistas de "Esquerda 21" produzem uma revista que, dispersa com ligeireza nos temas da ampla agenda imposta pela dinâmica econômico-tecnológica da atualidade e pelo discurso neoliberal hegemônico, não parece ter boas chances de vir a representar um instrumento de processamento mais denso dos problemas, capaz de pretender traçar novas orientações de maneira consistente. Assim, seu caráter "aberto" corre o risco de redundar apenas na expressão desorientada de uma perplexidade básica. Fortemente centrada nas contribuições dos próprios parlamentares, aos quais se deve de longe a maior parte do material publicado, a revista optou por um formato leve, constituído por "diálogos", em que deputados e senadores respondem brevemente a perguntas sobre diferentes assuntos, acompanhados de artigos também breves sobre os variados temas da agenda nacional e mundial (onde a presença dos parlamentares é outra vez dominante) e de entrevistas com autoridades. Tudo somado, não admira que a matéria mais atraente até aqui divulgada seja, algo paradoxalmente para uma publicação que pretende traçar novos rumos para a esquerda, a entrevista realizada com o presidente Fernando Henrique Cardoso, chefe de um governo tachado de neoliberal pela esquerda. Aliás, a entrevista é reveladora em seu próprio conteúdo, sendo com frequência confusa na discussão de orientações e perspectivas intelectuais -e às vezes positivamente desfrutável em certa afetação de "conversa entre esquerdistas", com sabor, surpreendentemente, meio "dezenove"... No varejo de temas, entrevistas e artiguetes, o que transparece de mais nítido em termos de orientação compartilhada e em alguma medida emblemática, além do apego à democracia e da referência à superação das desigualdades, é certa valorização (e mitificação) das categorias de "sociedade civil" e de "público"(ver o "diálogo" sobre Estado e mercado, no no. 1, bem como o artigo de Augusto de Franco, no no. 2), as quais seriam supostamente intermediárias entre mercado e Estado e aludiriam a recursos suscetíveis de serem mobilizados para controlá-los a ambos.
Entre o apego rígido a certos postulados e a ligeireza algo desorientada, as duas publicações ficam a dever-nos os elementos que ajudem efetivamente a "pensar pra frente" e dar respostas lúcidas a um par de questões que o novo cenário mundial torna mais angustiantes e prementes: em primeiro lugar, como conceber com clareza e viabilizar na prática política a solução da tensão profunda envolvida na própria idéia contemporânea de cidadania, que valoriza a um tempo o ideal clássico do civismo igualitarista e solidário e o ideal moderno e "burguês" da afirmação de si e da realização pessoal autônoma; em segundo lugar, como avaliar com acuidade e realismo a tradução dessa tensão nas relações entre democracia e capitalismo (e, quem sabe, eventualmente entre democracia e certo modelo novo de socialismo, que poderia talvez ajustar-se à designação de socialismo de mercado), de modo a potencializar o dinamismo "autonomista" do mercado e refrear sua propensão antiigualitária sem comprometer as condições da própria democracia.

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