São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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A transparência dos corações

MILTON M. NASCIMENTO

Os leitores da "Nova Heloísa", no século 18, fascinados pela trama do romance, julgavam que amantes tão apaixonados certamente deveriam ter existido em algum lugar e, quando começavam a ler o livro, não paravam mais, até chegar ao final. Rousseau teria conseguido o máximo de eletrização do público, atingindo em cheio sua sensibilidade. Será que "Júlia" ainda desperta o interesse de nossos leitores, mais de 200 anos depois do seu lançamento, em 1761?
Jean-Jacques, num dos prefácios, alerta-nos para o fato de que ninguém ficará indiferente à leitura dessa coletânea de cartas trocadas entre amantes e amigos de uma pequena região da Suíça, próxima de Genebra. "Este livro não é feito para circular na sociedade e convém a pouquíssimos leitores. O estilo desagradará às pessoas de gosto, o assunto alarmará as pessoas severas, todos os sentimentos não serão naturais para aqueles que não acreditam na virtude. Deve desagradar aos devotos, aos libertinos, aos filósofos, deve chocar as mulheres fáceis e escandalizar as mulheres honestas."
Estamos certamente diante de uma obra-prima da literatura -na qual já se apresentam todos os elementos do romantismo-, na qual tudo é sublime, desde o simples ruído das águas de uma cascata até o desvario de um coração dilacerado pela dor ao ver sua amada dirigir-se ao quarto ao lado, com o outro, na mesma casa, não com a surpresa de quem espreita uma traição, mas porque tomara a decisão de estar próximo da ex-amante, agora muito bem-casada.
Não é à toa que Júlia é a nova Heloísa. Se Heloísa não tinha outra escolha a não ser refugiar-se no convento, para suportar a dor da separação de um amante mutilado, sublimando o seu amor, a virtuosa e encantadora Júlia renuncia a Saint-Preux, casando-se com outro, porém jurando amor eterno ao ex-amante. O Abelardo moderno não está mutilado, mas sua renúncia o leva ao cúmulo de ir morar na mesma casa de Júlia, para guardar, no plano espiritual, o amor que fora a perdição dos dois na juventude.
A quem poderia ser útil uma trama como esta? A certas mulheres que, "levando uma vida degradada, ainda mantêm algum amor pela honestidade". Mas não será útil às moças, dirá Rousseau. "Nunca uma moça casta leu um romance, e coloquei neste um título suficientemente arrojado para que, ao abri-lo, se saiba o que esperar. Aquela que, apesar deste título, ousar ler uma única página, é uma moça perdida: mas que não impute sua perda a este livro, o mal fora feito de antemão. Visto que iniciou, que acabe de ler: não tem mais nada a pôr em risco."
Escrita com a técnica do romance epistolar, muito em voga no século 18, a "Nova Heloísa" é uma obra singular, na qual Rousseau expõe praticamente todo o seu sistema. Ali veremos elementos do "Discurso sobre a Origem da Desigualdade", do "Contrato Social", do "Emílio", da "Carta a d'Alembert", de suas reflexões sobre música, teatro, ópera, romance, botânica, religião, economia, de observações sobre os costumes dos povos, sobre a China, sobre o Brasil ("de onde Lisboa e Londres extraem seus tesouros e cujos povos miseráveis caminham sobre o ouro sem ousar tocá-los").
A estrutura do romance segue a filosofia da história de Rousseau e seu projeto político amadurecido no "Contrato Social". Ele considera o curso da história como um processo pelo qual o homem gradualmente passou de uma fase primitiva de independência e liberdade, no estado de natureza, para a vida em sociedade, regida por leis, até chegar ao aviltamento da desigualdade social, da escravidão e do despotismo.
O homem natural vive o presente, com simplicidade e seu coração é puro e transparente. O homem em sociedade é dissimulado, não pode viver sem os outros, está sempre preocupado com as conveniências, com as regras, com a opinião pública. Se quisermos uma prova disso, dirá Rousseau, basta compararmos as comunidades primitivas, que se bastam a si mesmas, com uma economia muito simples, praticamente de subsistência, com as sociedades ditas civilizadas, nas quais tudo é artificial, os costumes desregrados e as pessoas só se preocupam em ostentar aparências.
O que houve foi um grande processo de desfiguração, de tal modo que o homem que hoje conhecemos é apenas uma pálida imagem do homem natural. O tema do "Contrato Social" é o da possibilidade de recuperação da inocência e da liberdade do estado natural, porém, na sociedade. Se isto for possível, o homem será a mais feliz das criaturas, se não, só lhe restará lamentar o paraíso perdido para sempre.
A "Nova Heloísa" é a reconstrução romanesca dessa trajetória. Saint-Preux e Júlia vivem um amor intenso, perdidamente apaixonados, como verdadeiras almas-gêmeas. Mas o professor de filosofia é plebeu e Júlia, aristocrata. O cume da união dos dois, que poderia ser o início de uma vida feliz, é, na verdade, o começo da queda, pois Júlia já estava prometida para um amigo de seu pai e a união com Saint-Preux, se fosse descoberta, seria para a família a maior das desgraças.
Como apareceria diante do altar para casar-se, depois de ter pertencido a Saint-Preux? E por que Júlia não rompe os laços com a família e foge com ele? É que na sociedade, os preconceitos, a força da tradição, ligados aos laços afetivos entre pais e filhos, são mais fortes do que os sinais transparentes, porém frágeis, dos sentimentos naturais.
Acrescente-se a isso o acaso, pois se Júlia não tivesse perdido o filho que esperava, sua história talvez seria diferente. De nada adiantou também o discurso do amigo milorde Edouard a um pai cegado pelo preconceito: "A nobreza? Vã prerrogativa num país em que ela é mais prejudicial do que útil. Mas ele (Saint-Preux) a possui, não duvideis, não escrita com tinta em velhos pergaminhos, mas gravada no fundo de seu coração em caracteres indeléveis. Numa palavra, se preferis a razão ao preconceito, e se amais mais vossa filha que os títulos, é a ele que a dareis". Só restava à nova Heloísa casar-se sem amor e jurar amor eterno ao amante. E a este, a humilhação de ter de escrever uma carta de consentimento para o casamento de Júlia e a distância da bem-amada.
Seria possível corrigir um desvio tão antinatural? A sequência do romance será a narrativa dessa possibilidade. Imaginemos agora o ex-amante, Júlia, o sr. de Wolmar, os filhos, partilhando o mesmo espaço, numa comunidade sem precedentes, onde Saint-Preux e Júlia não podem romper o pacto de não mais se tocarem -embora tivessem jurado amar-se para sempre-, e de manterem um relacionamento de simples amizade. O sr. de Wolmar é um ateu virtuoso, amigo da ordem, honesto, justo, ótimo marido e pai afetuoso. Embora tivesse sentimentos, comporta-se como uma espécie de razão pura. Arquiteta o plano de acolher em sua casa o ex-amante de Júlia, numa tentativa de uni-los para "curá-los" daquele amor proibido.
Já que a distância, em matéria de amor, desperta a imaginação e inflama o coração com novas esperanças, quem sabe se, juntos, com o tempo, os ex-amantes fiquem apenas amigos. Júlia, a partir do casamento, transformara-se completamente, assumira os deveres de esposa perfeita e, em Clarens, ela é a alma da pequena comunidade, modelo de sociedade justa. Tudo ali funciona muito bem, numa harmonia perfeita. O amor da ordem impõe-se acima de tudo e a maior das virtudes é a obediência às regras da nova condição. Em compensação, a amizade entre o Sr. de Wolmar, Saint-Preux, Júlia, Clara, sua prima, é algo que beira o sublime. Entre eles não há segredos, os corações são transparentes como o cristal.
Tal como no "Contrato Social", do veneno extraiu-se o remédio para curá-lo. Resta saber se os dois amantes realmente ficam "curados". O equilíbrio da comunidade de Clarens só se mantém com muito esforço, muita vigilância, muita virtude. O tempo de Clarens parece não passar e, na festa da vindima, o coroamento da vida comunitária, quando todos se sentem iguais, incendeia-se a memória, traindo o passar do tempo. Está na hora de Saint-Preux partir de novo.
Os leitores do século 18 tinham razão de ler de um fôlego só o romance para conhecerem o seu desfecho, inundando suas páginas com lágrimas. Os leitores brasileiros só não poderão lê-lo da mesma forma porque terão de recorrer várias vezes ao original, pois há muitos problemas na edição do texto. A boa tradução de Fulvia Moretto -com uma introdução precisa sobre a obra- ficou bastante prejudicada pelos descuidos com a revisão. Fica aqui uma sugestão e um apelo para a segunda edição: "Não deixem os leitores aflitos, 'Júlia' merece um tratamento muito especial"! O editor Jean-Jacques já nos advertira que essas linhas foram escritas por gente muito simples e "quem quer que se resolva a ler estas cartas deve armar-se de paciência diante dos erros de linguagem". Os editores brasileiros exageraram.

Milton Meira do Nascimento é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "Opinião Pública e Revolução".

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