São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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O mundo na praça Alex

MARCUS VINICIUS MAZZARI

O romance "Berlim Alexanderplatz" (1929), talvez o maior sucesso literário da República de Weimar, provém de um escritor que, ao contrário de Thomas Mann, Brecht ou Musil, jamais aspirou a ser um clássico. Alfred Dõblin (1878-1955) o escreve aos 50 anos, redimensionando uma fantasia que até então o impulsionara a largas viagens pelo tempo e pelo espaço: à China do século 18, no romance "Os Três Saltos de Wang-Lun" (1915), à Guerra dos Trinta Anos, em "Wallenstein" (1920), aos cataclismos da anti-utopia em "Montanhas, Mares e Gigantes" (1924), ainda à Índia mítica e mística na epopéia "Manas" (1927); nos anos de exílio a imaginação literária de Dõblin, agora sob o influxo da conversão à fé católica, incursionaria também pela região amazônica, a "Terra Sem Morte", deixando-se arrastar, ao longo de centenas de páginas, pela torrente caudalosa do "mar fluvial".
Os nove livros de "Berlim Alexanderplatz", ao contrário, estão ambientados nos bairros proletários do Leste, que Dõblin conhecia como a palma da mão; para ali viera aos 10 anos, ali frequentara a escola e mais tarde abrira consultório psiquiátrico. Dessa atividade profissional resultam contatos humanos, observações e vivências que serão transfigurados em episódios do romance povoado de criminosos, prostitutas, gigolôs, desempregados, pequenos agitadores políticos. Sobre esse mundo de marginais e excluídos, a Praça Alexandre atua como força centrípeta, gerando a atmosfera espiritual que faz com que a cidade de Berlim ascenda à condição de principal protagonista.
A Berlim que o futurista Dõblin descortina ao leitor é uma cidade em vertiginosa transformação; o 4º, 5º e 7º livros abrem-se com intenso burburinho humano na praça sacudida pelo trabalho frenético do bate-estacas a vapor, escavadeiras, guindastes e outras "conquistas" da técnica moderna. Para sugerir esteticamente a dinâmica da cidade grande o autor lança mão de ícones, da colagem dadaísta, da montagem; com a vida das personagens entrelaçam-se, formando imenso mosaico, cartazes e placas de rua, manchetes de jornal, pregões da bolsa, boletins meteorológicos, propagandas e prospectos de firmas, sucessos musicais e sensações de 1928, taxas de mortalidade e natalidade, estatísticas de abate de animais, alusões bíblicas e mitológicas.
O "estilo cinematográfico", que Dõblin apregoa em escritos teóricos, busca igualmente enfocar os aspectos difusos, heterogêneos e simultâneos da realidade berlinense. Com a técnica do flash-back projeta-se, ao final do 2º livro, a cena de um assassinato anterior ao início do romance -e isto com descrições anatômicas e leis newtonianas. Também a justaposição de planos narrativos visa a sugestão estética da simultaneidade potenciada pelo caos da metrópole. Nisso, a narração pode inclusive abrir-se para a história universal e mesmo para uma dimensão cósmica: no final do 5º livro, à cena em que Franz Biberkopf é arremessado de um carro em alta velocidade e atropelado pelo carro perseguidor, segue-se, num corte abrupto, uma alocução ao Sol.
Mas, se em cada página do romance deparamo-nos com tal pandemônio urbano, há um subtítulo que diz: "A História de Franz Biberkopf". É esta que estrutura narrativamente os aspectos difusos e heterogêneos de "Berlim Alexanderplatz". Inicia-se com a libertação de Franz da penitenciária de Tegel, onde cumprira pena de quatro anos por homicídio culposo. "Começa o castigo", diz-se em alusão paradoxal à história de Adão e Eva, e o seu retorno a Berlim -pequenino ser tragado por Babilônia indevassável- é marcado pela visão de telhados trêmulos, um dos leitmotives do romance.
O primeiro momento forte em sua trajetória é o juramento de levar uma vida honesta. Franz tem a vitalidade e a força de um touro, caráter extrovertido, tendendo à fanfarronice, embora também ingênuo e bom. Assim ele adentra Berlim e o narrador se pergunta se não seria melhor já encerrar a história com esse final "amável e sem nada de insidioso". A história, porém, continua e logo vemos o ex-penitenciário ganhando a vida na Alex, fazendo biscates e vendendo jornal -o "Observador do Povo", diga-se de passagem, do emergente partido nacional-socialista. Mas aqui não é bem o caso de um proletário pervertido pela retórica nazista; esse Franz Biberkopf impulsivo não entende e não quer saber nada de política. Da mesma forma como se envolve a contragosto numa briga com um grupo de jovens comunistas, deixa-se arrastar mais tarde a uma reunião anarquista.
Não surpreende, portanto, a intensa polêmica suscitada pelo romance também entre a inteligência de esquerda (na qual se incluía o autor): membros da "Liga dos Escritores Proletário-revolucionários" -entre outros, Johannes Becher, que seria figura de proa na política cultural da Alemanha Oriental- qualificam-no de "ataque à tese da luta de classes organizada". Mas também Walter Benjamin, em sua resenha "Crise do Romance", chama a atenção para o fato de naquele livro a miséria mostrar apenas sua "face jovial", lembrando ainda que Lênin só odiava uma coisa mais do que a miséria: a conivência com ela.
Franz Biberkopf, como era de se esperar, não consegue cumprir seu juramento; logo ao primeiro golpe, a traição de Lders, refugia-se na bebida e cobre de imprecações o mundo que não o deixa ser decente. Vai-se preparando o terreno para o envolvimento de Franz -também aqui meio a contragosto- com o mundo do crime, o que o leva à perda do braço.
O pior, contudo, ainda está por vir. Sombria é a abertura do 6º livro: "Não há motivo para desespero. Até ter conduzido esta história a seu duro, terrível e amargo fim, usarei muitas vezes estas palavras: não há motivo para desespero". Pois o herói maneta, ainda forte como um touro, dá a volta por cima e, fortalecido pelo amor de Mieze, uma jovem prostituta, volta a Berlim e ao bando de Pums com o propósito de nunca mais ficar sob rodas. Com a implacabilidade de um destino sobrevém então o acontecimento que põe fim à existência terrena de Franz Biberkopf: o estupro e estrangulamento de Mieze.
O 9º livro narra o colapso do herói, o internamento numa clínica psiquiátrica, o longo e angustiado diálogo que tem com a Morte, o reencontro com vivos e mortos, descreve-se aqui "o que é dor" e por fim sua morte simbólica seguida do advento de um novo homem. Deste não iremos conhecer muita coisa; sabemos, porém, da superação de suas concepções individualistas e da opção pela solidariedade. Também o destino passa a ser encarado de forma diferente, o que se evidencia na longa passagem em que a voz do narrador, como tantas vezes ao longo do romance, se funde com o monólogo interior da personagem: "O que é afinal o destino? Para começar, é mais forte do que eu. Se formos dois, já é mais difícil ser mais forte do que eu. Se formos dez, mais difícil ainda. E se formos mil e um milhão, será bem difícil".
Esse final desiludido, mas também reconciliatório, levou Walter Benjamin, na resenha citada, a constatar na obra de Dõblin "o estágio extremo, vertiginoso, derradeiro, mais avançado do velho romance burguês de formação". Essa formação se dá, contudo, pela deformação física e psíquica do herói ou, mais precisamente, pela sua imolação. Pois à luz que emana do final da história elucidam-se as muitas variações em torno da temática do sacrifício, feitas sobretudo pelas alusões e referências bíblicas (recurso, aliás, que também visa conferir caráter épico ao texto). São títulos de capítulos tomados aos "Eclesiastes", comentários e digressões do narrador baseados no "Gênesis", nos "Profetas", no "Apocalipse"; há, no 4º livro, o pungente diálogo com Jó -intercalado em cenas de crua descrição do abate de animais num matadouro- e, no 6º, a bela reconstituição da caminhada de Abraão e Isaac para o ritual do sacrifício.
Por fim, a especificidade do romance, que diz respeito, diretamente, à tradução brasileira: Dõblin faz uso exaustivo do dialeto berlinense, como falado no submundo de marginais e prostitutas. O empenho do teórico Dõblin em renovar o romance pela restituição de formas épicas postula enfaticamente o aproveitamento da "linguagem viva". Dar-se-ia assim passo decisivo para a superação do isolamento do romancista e, ao mesmo tempo, para a constituição de uma nova comunidade épica.
A tradução brasileira renunciou sensatamente a criar uma linguagem que buscasse oferecer ao leitor uma correspondência com o dialeto berlinense, que estropia a gramática, mas que é animado, como ressalta Walter Benjamin, por epicidade intrínseca; não deixou, porém, de recorrer a gírias, expressões próprias da "malandragem", também a ditos e versinhos populares que correspondem bem aos originais. Portanto, uma tradução confiável e de leitura prazerosa, se assim se pode falar de uma obra que nos conduz aos abismos mais profundos da alma humana e nos mostra, como diz a Morte ao agonizante Biberkopf, que esse mundo é "não só de açúcar, mas de açúcar e merda e tudo misturado".

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