São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Entre democracia e liberalismo

RODRIGO DUARTE

O livro de Ricardo Terra parte da constatação da disparidade de posições assumidas por Kant frente ao liberalismo, à democracia e a fenômenos históricos concretos, como o militarismo esclarecido de Frederico 2º e a Revolução Francesa. Ao contrário, porém, de outras abordagens que, ou se aferram a algum aspecto particular -renegando todos os outros-, ou se limitam a denunciar a "incoerência" do pensamento político kantiano, Terra pretende "pensar as tensões do pensamento kantiano como essenciais à sua expressão" (pág. 9), como oriundas dos antagonismos do próprio universo histórico e ideológico que lhes serve de berço: a Prússia do final do século 18.
A impecável fundamentação dos enunciados de "A Política Tensa" começa não num dos inúmeros textos de Kant sobre filosofia política -posteriormente analisados-, mas na sua principal obra gnosiológica, sustentáculo para todo o sistema, a "Crítica da Razão Pura". Nela, ao lado das distinções entre intuição e conceito, conceitos empíricos e puros, figura aquela entre categorias (conceitos puros do entendimento) e idéias, significando essas últimas aquela classe de conceitos aos quais não corresponde imediatamente qualquer fato da experiência sensível. De modo que, se no plano da constituição do conhecimento as idéias ficam excluídas por seu caráter supra-sensível, no âmbito da sua justificação elas se revelam como imprescindíveis.
Mas é na filosofia prática propriamente dita que as idéias -entendidas por Kant de um modo quase platônico- se mostram com sua maior força, destacando-se aquela que será indispensável a todas as construções da filosofia política kantiana: a de liberdade. Com a peculiaridade, várias vezes enfatizada por Ricardo Terra, de que a liberdade enquanto idéia, sendo apenas regulativa, pode abstrair de contextos concretos essencialmente não livres, projetando sua realização -nunca totalmente perfeita- para pontos indeterminados do decurso histórico.
Dessa forma, não apenas a liberdade como idéia prática suprema, mas noções dela derivadas, como "Estado de Natureza", abstraídas do resultado de quaisquer pesquisas antropológicas factuais, ganham status de ideal aferidor do grau de perfeição atingido pela sociedade civilizada, como "um padrão de medida para a sociedade envolvida pelo luxo e por isso ignorante do que seja felicidade" (pág. 27). Isso sem subscrever totalmente o "bon sauvage" rousseauista, pois o estado de natureza segue sendo, para Kant, aquele da "Rechtslosigkeit", da ausência de justiça, o qual será obrigatoriamente substituído por um estado jurídico -com grau superior de racionalidade-, mediante um contrato originário, que reflita a vontade popular.
Esse Estado, entretanto, sendo ele também uma idéia, possui uma espécie de existência principalmente virtual, não necessariamente corroborada pelas condições políticas factuais (sendo muitas vezes exatamente contradita por elas): "Enquanto idéia, Kant insiste em afirmar o caráter jurídico do Estado, mas não do direito positivo, estatutário: o que está em causa são as leis a priori, os princípios que formam um sistema independente da experiência" (pág. 43).
A liberdade reafirma-se aqui como idéia reguladora da vida desse Estado, pois nenhum outro bem proporcionado por ele seria compatível com a idéia do estado jurídico, no qual a soberania do governante é uma expressão da vontade geral, bem-sucedida na superação do estado de natureza. A esse respeito, convém assinalar a flutuação, registrada por Terra, na concepção kantiana de soberania, ora mais "democrática", ora mais "liberal", como mais um indício da "tensão" ostentada no título do livro: "A manutenção dessas diversas abordagens da soberania (talvez pudéssemos falar até mesmo de concepções distintas) pode sugerir inconsistência, mas seria mais proveitoso pensar em ambiguidade ou tensão no pensamento" (pág. 50).
Uma vez que a ética kantiana é pensada fundamentalmente como uma moralidade pessoal, sua caracterização do direito depende de uma compatibilização entre as esferas privada e pública, a qual ocorre mediante a limitação recíproca das liberdades daqueles que coabitam o mesmo espaço político. Em relação ao caráter coercitivo dessa reciprocidade básica do direito em contraste com o postulado da liberdade como idéia, Terra assinala o que pode ser visto como mais um exemplo daquelas tensões que constituem a reflexão sobre o político em Kant: "Encontra-se aqui de novo a mesma tensão; a coerção recíproca, a lei da igualdade da ação e reação, de um lado, e, de outro, o princípio da liberdade universal" (pág. 82).
Conexa à referida tensão encontra-se a discussão, feita por Terra, do conceito kantiano de propriedade. Inicialmente o autor se refere à distinção, feita por Kant, entre posse sensível ("possessio noumenon") e posse inteligível ("possessio noumenon"), segundo a qual, por essa última, posso me considerar "lesado pelo uso que outro fizer desse objeto, mesmo que eu não esteja fisicamente em posse dele" (pág. 100), chamando a atenção para o caráter "sintético a priori" da mesma, por analogia com o tipo de juízo que melhor se presta ao conhecimento do mundo físico.
Ainda no que tange à propriedade, discute-se a diferenciação kantiana entre o direito pessoal, direito real e o direito pessoal-real. Esse último revelando, de início, uma série infindável de problemas, uma vez que diz respeito à aquisição de pessoas como se fossem coisas: engloba fenômenos tão díspares quanto o casamento, a relação aos filhos e à criadagem. Numa clara expressão do contexto patriarcal que lhe dá origem, essa forma jurídica entende o casamento como aquisição da mulher pelo homem, os filhos como uma aquisição feita pelo casal e a dos criados como um direito do "domus", ressalvando-se que a obediência dos criados para com os amos, dos filhos para com os pais e da mulher para com o marido não implicam em relação de propriedade (vedada a seres humanos), mas num direito de senhorio.
A propriedade das coisas remete à abordagem da aquisição originária, na qual Kant é confrontado principalmente com os pontos de vista de Grotius (aquisição pela ocupação) e de Locke (aquisição pelo trabalho). Diferentemente de ambos, para Kant, "o fundamento jurídico da aquisição encontra-se na posse comum, pois sem ela não se entende como alguém pode reivindicar a posse de algo que não detém" (pág. 117). Mas a reivindicação só tem sentido se a posse se torna efetiva mediante a intervenção de uma instância garantidora, a qual vem a ser o estado já plenamente constituído: "A instituição do estado jurídico, do estado civil, está intimamente vinculada com a necessidade da garantia da propriedade. Na medida em que é demonstrada a possibilidade da propriedade, já se abre caminho para a exigência de sair do estado de natureza e entrar no estado civil" (pág. 129).
Sob esse aspecto, torna-se imperativa para Kant a necessidade de uma filosofia da história, na qual as condições de possibilidade de um devir histórico são investigadas, ou, pelo menos, vislumbradas, uma vez que não há "leis naturais necessárias" na historicidade humana. E tal necessidade, segundo Terra, é posta pela tensão imperante no pensamento político kantiano: "A tensão entre o inteligível e o sensível, o idealismo político e a 'antropologia política', o direito político e as instituições políticas efetivas exige a filosofia da história" (pág. 162).
Terra conclui pelo caráter esclarecido e esclarecedor do pensamento político de Kant, que, abstraídos seus aspectos retrógrados -oriundos principalmente da situação sui generis da Alemanha em finais do século 18-, era um defensor enfático da liberdade de expressão: "A liberdade de expressão, apesar de ser permitida e limitada pelo governante, mesmo assim desempenha um papel fundamental na medida em que a partir daí o soberando pode ter conhecimento das injustiças a corrigir. E, mais ainda, com a liberdade o público pode esclarecer a si mesmo, difundindo as luzes" (pág. 174).
Escrito de forma objetiva e elegante, "A Política Tensa" não apenas enriquece o acervo brasileiro de obras de filosofia política, mas também fornece material de alto nível para discussões que são extremamente atuais, como a das relações entre o público e o privado, do papel do Estado na vida social, da factibilidade dos ideais políticos etc. O que torna o livro de Ricardo Terra de grande interesse não apenas para os especialistas, mas para qualquer pessoa aberta às complexas questões que envolvem a cidadania nesses tempos "neoliberais".

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