São Paulo, segunda-feira, 11 de março de 1996
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A arte de velejar

JOÃO SAYAD

Linda manhã de verão, vento firme e agradável de leste, mar calmo e previsão de entrada de uma frente fria ao anoitecer, com ventos fortes de sudoeste e chuvas pesadas. Você está em Santos e quer velejar na direção do Rio, exatamente contra o sentido do vento. Como velejar contra o vento?
Não há mistério -basta sair de Santos no rumo sudeste, na direção de Luanda, capital de Angola. Depois ao largo de Ubatuba, dar um bordo, mudar o rumo do barco para nordeste, na direção da Ilha Grande, na baía de Angra dos Reis.
Depois de algum tempo, mudar novamente, dar um bordo e apontar a proa do barco para o nordeste. Depois, outro bordo, para sudeste. O objetivo da viagem é o Rio, a leste, mas navegando em zig zag, nordeste e sudeste, chegaremos lá. O barco vai andar rápido e bem adernado, um pouco desconfortável. Teremos que sentar nas bordas e deixar as pernas para fora. De vez em quando, um borrifo de água salgada vai nos molhar e vamos ficar com frio.
Se quisermos evitar totalmente este desconforto, ao invés de rumar para sudeste no começo, podemos velejar com o vento mais de lado, pegando o rumo sul e depois o rumo norte.
Neste caso, a velejada vai ser muito agradável -o barco não aderna, podemos ficar confortáveis no cockpit, comendo e bebendo alguma coisa. Só que não vamos chegar ao Rio. Ficaremos num vai e volta entre norte e sul, continente e alto mar. E a frente fria vai chegar quando escurecer, nos empurrando violentamente para o Rio, com ventos fortes de sudoeste e muita chuva.
A discordância dos economistas do PT e do PSDB sobre o Plano Real parece o problema desta velejada entre Santos e Rio.
Os economistas do PT têm razão quando criticam o plano por atrelar a economia brasileira às contingências da política monetária americana. Não é um bom destino para nossa viagem. O crescimento excessivo do mercado financeiro internacional é em parte resultado do fim das desregulamentações e em parte o resultado do déficit público e do déficit comercial americanos. É um mercado instável, sem mecanismos definidos de controle e coordenação. Atrelar o destino da nossa economia a esta abundância de dólares é extremamente arriscado. Estamos velejando para onde não queremos ir.
Mas os economistas do PSDB também têm razão. Como resolver os problemas do país com uma elevada taxa de inflação? É preciso sentir e obedecer ao vento. Vamos velejar para sudeste e depois para o nordeste, ainda que o destino seja leste, o Rio de Janeiro.
Podemos aproveitar a abundância de dólares e estabilizar a economia, obedecer ao vento das idéias do momento e privatizar, controlar o déficit público (ainda que os Estados Unidos e a Europa não controlem), privatizar, importar tudo que possa ser importado, deixar que a indústria brasileira se vire e o desemprego cresça. São os ventos disponíveis no momento. Andaremos mais depressa, a viagem pode ser mais rápida.
Mas, viajando ao sabor do vento agradável, corremos o risco de esquecer o objetivo da viagem. Os verdadeiros problemas do país são a efetivação dos direitos políticos econômicos e jurídicos de uma grande massa de brasileiros deixados à margem.
Precisamos mudar de rumo, dar bordos muitas vezes. Além disto, os ventos podem mudar -os juros americanos podem aumentar; sem apoio e coordenação governamentais, a desindustrialização será imensa; o problema do emprego é sério e de difícil solução; os investimentos em infra-estrutura e particularmente em educação e saúde são fundamentais e de responsabilidade pública.
Não adianta velejar contra o vento, como argumenta o PT. Nem totalmente a favor do vento, como quer o PSDB. Getúlio foi grande velejador. Às vezes, virava para a esquerda, o PTB, e dava as costas ao PSD. Outras vezes, virava para a direita e dava as costas para esquerda. Os japoneses também sabem velejar: têm retórica a favor do livre comércio, da privatização e do mercado. Mas dirigem e coordenam sua economia muito bem e de forma muito diferente do discurso.
O PT está certo, queremos ir para o lugar de onde sopra o vento. O PSDB também está certo -não é possível velejar contra o vento.
Só que às vezes tenho a sensação de que o governo, aproveitando os prazeres do vento de través, esquece o objetivo planejado da viagem. Permite déficits comerciais muito altos, pratica taxas de juros excessivamente elevadas, não é ambicioso ou corajoso em seus programas sociais, permite concorrência destrutiva para a indústria nacional.
No curto prazo, a velejada é rápida e agradável para quem está dentro do barco. Só que chegaremos a África. Para chegar ao objetivo planejado é preciso orçar bastante, apontar o rumo do barco com determinação contra o vento no limite do possível.

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