São Paulo, segunda-feira, 11 de março de 1996
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Vasto mundo, se me chamasse Clarimundo...

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Toca o telefone do Rio voz de mulher, é da minha casa:
"Estourou."
"Como estourou?"
"Estourou, pô."
"Em quanto estourou?"
"R$ 800. Foi médico, material escolar, você sabe."
Sim, eu sei. De novo confrontado com o vermelho na conta bancária. É uma cor tão forte em política. Mas tem o seu reverso. Na guerra da Iugoslávia, os sérvios adotavam o vermelho e uma estrela como símbolo. De longe, parecia o PT. Mas atiravam contra nós, sem nenhuma piedade.
Olho para o frigobar, sonho com uma água de coco. Anda cara a água de coco, quatro reais a garrafinha. Antes de estender a mão, é preciso pensar duas vezes, afinal o equilíbrio doméstico, a economia, tudo isso separa minha sede de sua doce realização. Capítulo: afinal o que vale a vida, sem uma água de coco, aqui nos trópicos, onde faz calor e os coqueiros continuam dando coco, até nas canções populares?
Entrar numa livraria, então, é uma operação delicada. Comprar ou não comprar, trair ou não o íntimo pacto de austeridade? Envolver os dedos em camisinhas, folhear platonicamente os livros.
Mundo vasto mundo, se eu me chamasse Clarimundo não seria só a rima, mas uma solução. Se soubesse maquiar meus balanços como o Banco Nacional, se tivesse um guarda-chuva contábil que me protegesse numa tela escura de números.
Se pudesse, como o Nacional, fazer grandes congressos em hotéis cinco estrelas para gastar alguns milhões e discutir nossa situação financeira.
Segundo os jornais, os próprios executivos se vestiam de mulher e usavam faixas: Miss Liquidez, Miss Fluxo de Caixa.
Também eu me vestiria de mulher, Miss Escassez, aceitaria algumas pancadas no momento do desfile, mas queria sair dali, no azul, nadando em lucros, com várias garrafas de água de coco na mochila.
Se pudesse contratar executivos modernos como eles, passar tudo para o inglês, god, transformar o padeiro, o senhorio em armanis blasés que transitam na coluna de déficit com a elegância de quem, discretamente, ignora o subúrbio cafona.
Tudo que vejo é o vermelho. Arremeto minha cabeça, ele escapa. Cavo a poeira do chão, invisto de novo, e, de novo, ele me dribla como a um touro tonto.
Vermelho, vermelho, vermelho.
Pessoas físicas podem se tornar fantasmas. Mas as malhas de repressão sabem encontrá-los. Se me chamasse Clarimundo, se soubesse inventar 600 fantasmas jurídicos, aí sim daria para escapar em paz.
Arrisco um cheque voador e, pronto, lá vêm os homens, implacáveis: cassam a conta. O tráfego não permite pequenas aeronaves: voam CDBs, voam títulos, debêntures, tudo voa, só nosso cheque é alvejado pelos foguetes como desastrados pombos num clube de tiro ao alvo.
Mundo vasto, vasto mundo, se eu me chamasse Clarimundo pintaria meu vermelho de azul, cravava uma âncora nos voadores, transformava menos em mais, com a simplicidade de quem transforma água em vinho.
E ainda mandaria a mensagem para o governo que viria de helicóptero me salvar das ondas, comprar minha parte podre, arquivos enferrujados, sapatos mofados pela umidade do verão.
Enquanto isto não acontece, só me resta perseguir o vermelho, cabeceá-lo com raiva, escorregar, sentir as facadas doloridas na pele? R$ 100, R$ 200 e, o que é pior, ouvir das melhores famílias mineiras e baianas, gritando da arquibancada: "Olé, olé".
Mamonas Assassinas
O trabalho de cobertura do enterro dos Mamonas Assassinas é um dado do Brasil moderno. As TVs e emissoras de rádio se dedicam com tanto empenho que, às vezes, as próprias famílias do morto perdem o controle da cerimônia.
Um repórter de TV no fim da tarde de domingo anunciava ao vivo: "Os caixões já foram comprados".
Ora, isso é um tipo de detalhe que só tem importância para os mais íntimos, e além do mais só importância jornalística se as pessoas mortas fossem tão pobres que a compra dos caixões acabasse se tornando um acontecimento em si.
Qualquer dia estarão oferecendo um vídeo com os melhores momentos dos enterros de Tancredo Neves, Senna e dos Mamonas.

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