São Paulo, segunda-feira, 11 de março de 1996
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A cola assassina

DARCY RIBEIRO

O vício que mais enferma e mata crianças brasileiras não é a maconha nem a cocaína, é a cola de sapateiro. Sempre que se vê um grupo de meninos de rua parados, conversando, pelo menos um deles está cheirando cola. Ultimamente a cola entrou também nas escolas e está fazendo arrasos nas crianças todas. Sei de uma família de intelectuais de alta classe média que perdeu uma filha de 11 anos, cheirando uma lata de cola escondida em sua gaveta, antes de sair para a escola.
É, portanto, um veneno que induz crianças a correrem risco de vida. Que é que há atrás disso? Só há ganância de lucro das empresas produtoras de cola, indiferentes pelo destino de milhões de crianças brasileiras. Eles até fabricam e distribuem em pequenas latinhas, para que estejam ao nível de consumo das crianças mais pobres. Fabricam também atentos para que a cola tenha um cheiro inebriante. Criança que cheira uma vez fica viciada, não pode deixar de cheirar. A cola deles é uma substância de natureza viciante, coisa rara, mas seu efeito é carcomer os pulmões e matar. Trata-se hoje, pois, de uma cola assassina.
O mais grave do vício de cheirar cola de sapateiro é que, ao contrário da maconha, da cocaína e similares, ele pode facilmente ser eliminado, salvando-se milhões de crianças de hoje e de amanhã. Para tanto, basta aprovar na Câmara dos Deputados a lei que fiz aprovar no Senado, determinando às indústrias fabricantes de cola que, em lugar de fazê-las de odor irresistível para as crianças, as façam com o cheiro ruim que induza à rejeição.
É claro que as transnacionais da cola querem continuar lucrando com seu produto assassino. Para não mostrar a cara, põem em movimento outros lobbies. Eles assediaram muito os senadores que resistiram e, agora, se enxameiam sobre os deputados.
Estiveram nesta campanha, por algum tempo, os sindicatos das companhias fabricantes de sapatos, para dizer que, com a cola que proponho, seus sapatos sairiam fétidos, impróprios para uso ou para exportação. Não é verdade. Isso só sucederia se as indústrias assassinas não pusessem seus competentes químicos a trabalhar para produzir uma cola volátil, não indutora de vícios e antes repulsiva que atrativa. Nenhum sapato ficaria fedendo e muitíssimas crianças seriam salvas para si mesmas e para o Brasil.
As indústrias assassinas asseguram que só no Brasil as crianças cheiram cola. O vício, portanto, é culpa delas ou da má educação que recebem. Cumpre por conseguinte, dizem elas, melhorar a educação e não alterar a cola. Deixam assim às crianças e suas professoras a tarefa de combater o vício com que lucram. Um raciocínio perverso em causa própria. Prometem até não mais fabricar as latas miudinhas, destinadas às crianças mais pobres. Só fabricarão as maiores, mais caras. Ocorre que menino de rua não é besta, roubam mais e fazem vaquinha para pagar a latona, que dividem em pequenas doses no fundo de garrafas usadas de refrigerante, para continuar cheirando com todo conforto.
Em face desta resistência dos industriais da cola em acabar com o vício, fabricando uma cola que apenas cole, precisamos atuar sobre todos os deputados, alertando-os para esta perversidade assassina, mas lucrativa. Não há nenhum vício mais fácil de erradicar, isto só é impedido pela teimosia e pela cobiça de fabricantes irresponsáveis. Um deles chegou a dizer a um senador: "As crianças do meu país não cheiram cola, isto é coisa de menino de rua brasileiro!" Os próprios meninos, acrescenta ele, dizem que cheiram é para matar a fome.

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