São Paulo, terça-feira, 12 de março de 1996
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ONU: crise financeira ou crise política?

LUIZ A. P. SOUTO MAIOR

Em sua recente viagem ao Brasil, o secretário-geral da ONU trazia na sua agenda, segundo os comentários da imprensa, dois temas centrais: a crise financeira da ONU, que ameaça levar à falência a organização mundial, e a reforma da instituição, na qual se inserem a mudança na composição do Conselho de Segurança e a aspiração do Brasil a dele tornar-se membro permanente. Na verdade trata-se de dois aspectos do mesmo problema.
A ONU enfrenta um rombo financeiro da ordem de US$ 2,4 bilhões. A inadimplência dos grandes Estados-membros, causa principal de tal situação, não se deve, entretanto, à falta de recursos, mas à decisão política de não pagar. O caso dos EUA, que respondem por cerca da metade daqueles US$ 2,4 bilhões, é ilustrativo.
Washington está em atraso com as suas contribuições simplesmente porque o Estado americano se acomoda mal dentro de um multilateralismo que, embora favorecendo as grandes potências, nem sempre se amolda inteiramente aos seus desígnios. O problema central não é, pois, financeiro, mas político.
Por outro lado, uma reforma da ONU não deveria limitar-se a mudanças na composição do Conselho de Segurança. Reformar as Nações Unidas significa, em última análise, rever a missão que os Estados-membros lhe desejam confiar e adequar a sua estrutura e os seus procedimentos a tal missão. O problema é que, coletivamente, não há entendimento sobre qual deveria ser o papel da ONU e de que forma ela deveria desempenhá-lo.
Como é natural, cada Estado deseja um organismo cujo funcionamento favoreça seus interesses fundamentais. Assim, para as grandes potências trata-se de estabelecer -ou eventualmente manter- um sistema que, globalmente, favoreça a atual distribuição internacional de poder, mas que não crie muitas peias à liberdade de atuação de cada uma delas.
A Carta das Nações Unidas, concebida na década de 40, favorece a distribuição de poder da época e, pelo direito de veto assegurado aos membros permanentes do Conselho de Segurança, coloca-os ao abrigo de decisões obrigatórias, por eles percebidas como indesejáveis. Ainda assim o sistema é às vezes considerado restritivo por uma ou outra grande potência.
Exemplo recentíssimo foi a atitude americana em relação à derrubada de dois aviões civis pela força aérea cubana. Washington pediu uma reunião de emergência do Conselho de Segurança, mas antes que ela se realizasse ou que as circunstâncias do caso fossem plenamente elucidadas o secretário de Estado declarava que os EUA tomariam "atitudes próprias e isoladas". Cingir-se aos procedimentos internacionais, atuando dentro e por meio da ONU, era inaceitável para a maior potência mundial.
Para os países mais fracos, entretanto, trata-se justamente de limitar o arbítrio dos mais fortes e de favorecer a redistribuição internacional do poder político e econômico. É praticamente a antítese do que desejam as grandes potências.
Dada a distância entre os dois enfoques e a assimetria de poder entre os que defendem cada um deles, a pergunta é se é realista esperar uma reforma da ONU, no sentido indicado acima. Para que uma conciliação de posições tão divergentes fosse possível, seria preciso que na comunidade internacional, a exemplo de muitas comunidades nacionais, os poderosos se convencessem de que o respeito de todos a uma lei justa é menos incômodo do que a ausência de lei.
A julgar pelo discurso político de muitos líderes mundiais, é até possível que estejamos presenciando uma evolução extremamente lenta em tal sentido. Mas entre a retórica e a prática continuará havendo, por muito tempo ainda, uma imensa distância.
Assim, a reforma da Carta da ONU poderá levar a algumas melhoras no sentido de uma mais efetiva representatividade do organismo mundial ou de certas concessões aos reclamos dos países em desenvolvimento. No essencial, porém, as normas continuarão a favorecer os fortes e a coibir os fracos, nunca o contrário. Só assim as contribuições serão pagas, talvez...

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