São Paulo, sábado, 16 de março de 1996
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O tempo das solteironas dá bom cinema

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O grande mérito do filme "Razão e Sensibilidade" é que Emma Thompson (o diretor Ang Lee também, mas sobretudo Emma) nos coloca entre as mãos, à luz de velas, um lindo romance escrito 200 anos atrás. Não temos nada a ver com aqueles castelos cheios de cães e cavalos de raça ou com os "cottages" mais modestos de uma Inglaterra que dizia adeus ao seu passado rural. Mas já vou corrigindo: não temos nada a ver com os detalhes, com a ausência, digamos, da senzala naqueles campos ou com o excesso de olhos azuis, cabelos louros, lareiras. Mas o drama central, das solteironas sem dote e angustiadas pelo temor de nunca se casarem, de ficarem no caritó, como se dizia no Brasil - caritó sendo o recanto das tias, das coisas guardadas e esquecidas- esse é do nosso passado também. Aliás, a autora de "Razão e Sensibilidade", Jane Austen (1775-1817), chegou até a noivar, mas casar, não casou nunca: ficou no caritó.
Quase todo o mundo achou, quando o cinema adquiriu voz, e até música, em "Broadway Melody", que o teatro estava liquidado e que a literatura em geral entrava também em crise perigosa. Foi quando as más línguas começaram a dizer -e ainda repetem- que o romance já era. Não era, não foi, não será nunca, pela simples razão de que arte não evolui. Arte se acumula, se sucede e continua sempre a pulsar com a vida que nela se contém. O importante, quando a gente pega um livro acabado de escrever, ou escrito há séculos, é encostar o ouvido nele e prestar atenção um instante: se houver voz de gente viva lá dentro o livro é bom. Não acaba nunca.
A gente comprova, assistindo a "Razão e Sensibilidade", que os filmes que hoje predominam, fumegantes de sexo e violência, não embotaram nosso gosto pela serenidade de outrora. Em vez de se cancelarem e destruírem, as várias formas de arte convivem umas com as outras, e, à medida que amadurecem, se reforçam. Acho que não é sequer preciso acrescentar que o indispensável é manter a "qualidade" da obra original. "Razão e Sensibilidade" é o sucesso que é porque, com seu roteiro e seu "acting", Emma Thompson transportou para a tela a qualidade do livro escrito por Jane Austen. A mesma sorte não teve, por exemplo, uma obra-prima do romance mundial, "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Bront‰. Laurence Olivier sem dúvida trouxe para a tela um Heathcliff à altura do herói do romance. Mas Merle Oberon não parece ter tido a mínima idéia sobre quem era a heroína. Se Emma Thompson já existisse naqueles dias ("O Morro..." é de 1939) e, além de representar Cathy, fizesse o roteiro do filme, teríamos tido, rugindo na tela, a tempestade que é o romance.
Agora vou mais longe e arrisco dizer que em certos casos o cinema pode até vivificar obras literárias que não tenham resistido tão bem ao tempo. De alguma forma o romance clássico brasileiro que eu mais gostaria de ver transformado em cinema é "Senhora", de José de Alencar. Não ficou famoso como "O Guarani", que virou ópera, como "Iracema", que é a nossa Pocahontas, como "Lucíola", nossa "Dama das Camélias". Mas "Senhora" focaliza, de forma inesperada, quase chocante, a relação de escravo e patroa em nosso Segundo Reinado. Só que Alencar, para seguir a linha original do seu enredo, apresenta como escravo o Seixas, homem branco, elegante, caçador de dotes. Alencar jamais ousaria criar uma personagem branca, uma "senhora", que se apaixonasse por um escravo de verdade, um negro. Criou então sua metáfora. O moço janota e fino, mas curto de dinheiro, até que acha Aurélia interessante, e Aurélia se rende logo aos encantos dele. Mas Aurélia é pobre, e ele, que tem horror à idéia de ganhar a vida trabalhando, vai cantar em outra freguesia. Acontece que Aurélia recebe uma inesperada herança e trata, sem perda de tempo, de casar com o Seixas.
Mas -aqui a mola mestra da trama- Aurélia guarda em segredo a notícia da herança e faz a proposta de casamento por meio de emissários. Estes se limitam a garantir ao Seixas, que além de tudo é um convencido e frívolo peralta, que sua misteriosa pretendente é moça, bonita, e lhe abrirá logo uma conta no banco. O pobre do futuro escravo primeiro aceita o que a sorte lhe oferece, e em seguida exulta ao saber que sua rica apaixonada é Aurélia. No entanto, ai de nós, quando se casam e ele pensa que vai dormir com ela de noite, Aurélia lhe tranca a porta do quarto na cara. Ela casou com o Seixas para puní-lo, comprou-o como se comprasse um escravo no mercado do Cais Pharoux, e ele agora que durma sozinho, ou durma, em verdade, em sua senzala de solteiro.
José de Alencar era sentimental e romântico demais para aguentar uma barra assim, para deixar o Seixas, indefinidamente, no tronco. Morto de vergonha e de ânsia de regeneração, o Seixas passa a suar o colarinho duro e as polainas, trabalha como jamais esperara fazer na vida, e, finalmente, paga a Aurélia o verdadeiro "dote" que dela recebeu. Fazem as pazes, ele se mete na cama dela e começam a ser felizes para o resto da vida. Aqui entre nós, nas mãos de Machado de Assis "Senhora" provavelmente resultaria num romance aterrador.
Ao ler "Senhora", muitos e muitos anos atrás, destaquei do texto uma passagem de que não me esqueci mais. Tem a ver com a própria palavra "senhora", que ainda hoje se ouve pronunciada "senhôra", por pessoas de falar mais afetado ou que, me parecia, eram do interior. Pelo que diz Alencar, a variação na pronúncia teria algo a ver com a própria escravidão. No tempo em que Aurélia ainda está recusando ao Seixas o frescor de sua fronha, trava-se um diálogo em que ela quer saber dele porque a chama "senhóra", com acento agudo no o, e não "senhôra", com circunflexo. Meio apanhado de surpresa o Seixas diz que, ao que supõe, a fórmula mais cortês da palavra, entre iguais, seria "senhôra". Mas, prossegue, "nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês a relação de império e domínio, usamos a variante que soa mais forte. (...) O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona, 'senhóra'. Eu talvez não reflita e confunda". A isto Aurélia responde com uma arrogante pergunta: "Quer isto dizer que o senhor considera-se meu escravo?"
Dito isso tudo, declaro aqui que o velho e esquecido romance "Senhora" (ou "Senhôra") de José de Alencar bem que merece as atenções cinematográficas de Arnaldo Jabor, Ruy Guerra ou Walter Salles Jr.

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