São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Casal Clinton troca seus "papéis sexuais"

CAMILLE PAGLIA

Continuação da pág. 1-23

especial para a "The New Republic"
Hillary Clinton demonstra o brilho duro e quebradiço da mente calculista, analítica, que em seus momentos mais legalistas demonstra uma impessoalidade arrogante, assustadora.
Sua frieza também é a assexualidade de uma filha primogênita precoce que adotou como modelo seu pai, teimosamente independente, e que travou uma longa e silenciosa guerra de resistência obstinada contra uma mãe puritana, hipercrítica. Hillary teve de aprender a ser mulher; não era algo fácil ou natural para ela.
O que vemos na atual primeira-dama, de postura impecável, é um produto teatral irrepreensível, cujas etapas de autodesenvolvimento, nas quais passou de "butch" (lésbica de maneiras masculinas) para "femme" (de maneiras femininas), foram motivadas pela ambição política pura.
Ela é a drag queen da política moderna, um símbolo fascinante da busca, às vezes confusa, da mulher profissional por identidade, nesta nossa era de opções ilimitadas.
O primeiro casal presidencial de duas carreiras dos EUA representa a atualização moderna da prática antiga do casamento político e uma experiência feminista falida com a redefinição sexual.
Hillary se sentiu atraída por Bill pela primeira vez quando o ouviu se gabando do tamanho das melancias do Arkansas. Em seu livro ela fala do sistema "prato limpo" que vigorava durante sua juventude suburbana, quando os pais obrigavam Hillary e seus irmãos a consumir uma "catástrofe calórica" em atenção às "crianças que estão morrendo de fome".
As melancias de Bill, exóticas e rurais, eram um símbolo de liberdade, fertilidade e abundância. Ele era o "homem feminino", cuja androginia juvenil parecia prometer à geração feminista de Hillary uma fuga do passado sexista.
A ironia disso tudo é que o estilo desajeitado, imaturo, de Bill é uma das técnicas de sedução mais eficientes que jamais existiram, desencadeando o instinto maternal nos seus alvos adequados. Uma das humilhações que Hillary vem sofrendo no momento é o fato de que o processo que Paula Jones move contra Bill por assédio sexual expõe o quanto a própria Hillary julga mal os homens quando está romanticamente envolvida: o "novo homem" acabou revelando não passar de mais um perseguidor de rabo de saia à moda antiga.
Uma hostilidade em relação à masculinidade convencional pode ser detectada no passado dos dois Clinton. Pelo fato de seu pai ter morrido antes de ele nascer e seu padrasto ter se mostrado abusivo, Bill não teve modelos masculinos positivos próximos para seguir.
Quanto a Hillary, embora idolatrasse seu pai e pareça ter competido com sua mãe e seus irmãos para ser a "garota número um do papai", ela não deixou de perceber o dano psicológico provocado pelo domínio férreo que ele exercia.
Em seu livro, Hillary relata um incidente ocorrido na escola primária, quando um garoto mais velho de fora do bairro a perseguiu, jogou ao chão e beijou. Ela fugiu para casa "gritando" e lavou seu rosto "muitas e muitas vezes".
A temática da intrusão e contaminação masculina iria retornar em momentos públicos cruciais descritos por suas colegas de classe numa biografia lançada pela Arts and Entertainment Network.
No pódio de sua formatura no Wellesley College, em 1969, Hillary abandonou o discurso previamente preparado para fazer duras críticas ao convidado de honra, Edward Brooke, senador negro norte-americano de Massachusetts.
A explicação dada por suas confidentes para essa grosseria arrogante, que enfureceu a direção da escola, foi que Hillary tentava desferir um golpe juvenil contra o establishment representado pelo senador republicano Brooke.
Mas minha teoria é outra: Hillary estava manifestando uma reação visceral contra a invasão de sua escola, exclusivamente feminina, por um homem glamouroso, com ares senhoriais, que, a julgar pelo único encontro passageiro que tive com ele quando ele descia elegantemente os degraus do Capitólio, em 1972, era nitidamente afeito a tentar conquistar mulheres.
As repressões e ressentimentos sexuais de Hillary, a rainha do gelo, exerceriam efeitos de longo alcance sobre a política, quando o casal Clinton chegou a Washington.
Com sua reputação de fugitivo do alistamento militar obrigatório, era crucial que Bill se firmasse, da noite para o dia, como comandante-chefe das Forças Armadas.
Longe de tranquilizar os céticos, ele comprometeu sua autoridade nascente com indicações que, fossem quais fossem seus méritos objetivos, fizeram sua administração parecer um bando maltrapilho de desajustados físicos e sexuais.
A figura mais masculina nomeada por Clinton foi Janet Reno. Uma consequência desastrosa do mal-estar dos Clinton diante de homens másculos foi o tratamento confuso que deram à questão dos gays no setor militar.
Foram reportadas tensões entre Hillary e os primeiros agentes do Serviço Secreto designados para proteger sua família, e também com os agentes de segurança do governador em Little Rock, que teriam agido em conluio com seu marido para acobertar as "travessuras" amorosas dele.
Para Hillary, o masculino é inerentemente vulgar e indigno de confiança. Ela tampouco se deu ao trabalho de ocultar o desprezo que sente pelas manifestações de masculinidade caricata quando, na época em que Bill era governador, preferiu ler um livro em campo, enquanto ele aplaudia a equipe de futebol americano da Universidade do Arkansas.
O masculino pode haver sido tabu na família de Hillary em parte porque sua mãe nascera de uma garota de 15 anos, cujos descendentes poderiam enxergar a figura masculina como aquela do raptor, explorador, violador.
Educada para brilhar, a jovem Hillary, a pensadora, seria capaz de pressentir os perigos inerentes à condição de parecer feminina demais, que significava passiva e vulnerável. Fotos de Hillary na faculdade de direito e no início do casamento mostram que ela assumia uma aparência pública malvestida, de pessoa estudiosa e constantemente debruçada sobre livros, como instrumento defensivo, para apagar o ardor masculino.
Como muitas mulheres talentosas e ambiciosas, ela tinha dificuldade em integrar sua inteligência com sua sexualidade. Essa frigidez esporádica (análoga a sua obsessão com a privacidade) iria desempenhar um papel nas infidelidades de seu marido. Fisicamente falando, Gennifer Flowers era Hillary sem o gelo -uma gueixa atenta, receptiva, aduladora, sempre pronta.
Ao que tudo indica, no ambiente de aquário da Casa Branca, Bill Clinton assumiu suas responsabilidades e vem suportando com coragem sua falta de acesso a mulheres fáceis. Chelsea, que em 1992 parecia uma órfã de guerra em comparação com os animados filhos do casal Gore, vem florescendo durante essa fase de renovação do casamento de seus pais.
Quando Bill perdeu a campanha pela reeleição a governador do Arkansas, em 1980, Hillary mergulhou em sua primeira grande transformação externa -foi como se tivesse frequentado uma escola de chefes de torcida.
A atual primeira-dama carismática nasceu daquela autotransformação politicamente motivada. O "Rodham" de seu nome foi jogado fora, como também o foram os óculos de aro de tartaruga, e Bill reconquistou triunfalmente o cargo de governador.
Boa estudante que é, Hillary havia descoberto que as máscaras da feminilidade podem ser aprendidas e adequadas ao mundo. Ela se tornara uma drag queen política, mestra da representação de papéis masculinos e femininos. Mas sua alma férrea permanece, o substrato de lésbica masculinizada que pode ser visto no rosto exangue e olhar maléfico da advogada Susan Thomases, com quem mantém laços estreitos, o lado sombrio de Hillary. Hillary se vê dividida entre os pólos opostos da cordial e acessível Gennifer Flowers e da implacável e masculinizada Susan Thomases.
Esse sentimento que ela possui de fazer parte dos eleitos ainda é muito evidente pelo tom incisivo, agressivo que ela emprega na maioria de seus discursos.
A efervescência dos anos 60, da qual emergiu a geração de Hillary, possuía vários elementos distintos, cada um dos quais gerou sua tradição subsequente. A ala cultural pró-pornografia, pró-pop do feminismo da qual eu, por exemplo, faço parte, foi derrotada, e só recentemente vem ressurgindo.
Hillary estava do lado vencedor, ao lado de Gloria Steinem e Catharine McKinnon. As três supervalorizam o reino verbal e confundem boas intenções com bons efeitos.
Na condição de defensora das crianças, Hillary promulga um protecionismo agressivo que reduz ao nada os "direitos biológicos" dos pais de nascença e amplia o período de incompetência dos jovens, que ela considera incapazes de fazer escolhas sexuais fundamentadas antes dos 21 anos.
A carreira de Hillary tem estado estreitamente interligada com uma plutocracia arrogante de advogados, burocratas e lobistas, que incentivaram sua ilusão de que ela e as pessoas que a cercam conseguiriam reformar o sistema nacional de saúde de maneira rápida e unilateral. Um QI alto somado a instintos despóticos é uma combinação perigosa, numa democracia.
Isso nos traz ao presente, com Hillary presa numa teia de negações e meias-verdades, tecida por ela mesma. Hillary parece ser incapaz de auto-análise ou nivelamento com o público.
Como adepta do utilitarismo, falta a ela o senso de sutileza e ambiguidade que se pode adquirir com o estudo da arte. Como muitas de suas colegas do establishment feminista, ela parece ser hostil à psicologia e pode haver buscado o direito como meio de fugir do reconhecimento das complexidades mutuamente destrutivas dos relacionamentos familiares.
Seu raciocínio moral é deficiente, pois ela parte do pressuposto apriorístico de sua própria virtude. No entanto, depois de tudo isto dito, Hillary Clinton é no momento e provavelmente continuará sendo um modelo importante.
Ao centrar suas atenções sobre as crianças, seu livro habilmente desvia o feminismo das teorias estéreis e o traz de volta às questões fundamentais. Estamos assistindo apenas o início do que pode vir a ser uma telenovela vitalícia, acompanhada por milhões de espectadores. Como Judy Garland, Maria Callas ou Madonna, com seus excessos, seus tormentos amorosos, suas dores e suas voltas por cima, Hillary, a mulher-homem e deusa-cadela, se tornou uma superestrela estranha, cuja ascensão e queda já se transformaram na matéria da qual se tecem os mitos.

Tradução de Clara Allain

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