São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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A cruzada dos meninos

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Bigode, cujo nome desconheço, vendia cachorro-quente à porta da faculdade de Economia da USP. Suprindo com eficiência e a preço módico uma grande clientela, formada por alunos que chegavam esfomeados do trabalho e precisavam "enganar" o estômago antes da aula, Bigode atingira uma confortável posição no mercado.
Com a curiosidade científica aguçada por aquele minúsculo e bem-sucedido monopólio, dois colegas bolaram um plano sórdido: abrir uma barraca de cachorro-quente junto à do Bigode, competir ferozmente com ele e relatar a experiência em uma monografia, pomposamente intitulada "Estudo da Formação de Preços em Duopólio".
Era brincadeira, claro. A barraca do Bigode não foi usada em experimento algum, jamais teve ameaçada sua saúde financeira, e, quando de minha última visita à escola, continuava firme como o Corcovado.
Nos últimos dez anos, contudo, planos mais sérios e ambiciosos do que o da dupla de estudantes saíram para a avenida, dando ao público a incômoda sensação, da qual Bigode foi poupado, de fazer papel de cobaia.
Infelizmente, não há outro jeito. O fato de a economia ser uma ciência humana, e, como tal, imprecisa e falível, faz de qualquer política econômica, mesmo teorizada em pilhas de papel e executada por craques, um exercício de tentativa e erro.
Seria um alívio se, ao menos, os planos tentassem e errassem pouco, mas alguns eram tão heterodoxos que não comportavam medidas "arroz com feijão": a idéia era mesmo virar a mesa.
O Plano Cruzado completou dez anos. Foi lembrado nos telejornais em reportagens ressentidas, com cenas revistas em quase todos os planos posteriores: falas em rede nacional do presidente da República e do ministro da área econômica, a equipe econômica esclarecendo dúvidas, o apoio hesitante dos empresários, o ufanismo da Globo.
Em cenas jamais repetidas, viu-se o entusiasmo geral com o aumento dos salários e o congelamento, que até fez baixar o preço do chope. Tinha de dar certo, pensavam quase todos.
A TV mostrava donas-de-casa conferindo preços de tabela na mão, carros com adesivos "Eu sou fiscal do Sarney", e um cidadão curitibano fechando, "em nome do povo", o mercado que burlava o congelamento.
Também marcante foi a cena da hoje deputada federal Maria da Conceição Tavares, comovida às lágrimas ao falar da coragem e dedicação com que seus ex-alunos ("os meninos", dizia ela) tentavam consertar a economia.
Anos depois, no "Roda Viva", ela lembrou com bom-humor a piada dos empresários, que atribuíam seu choro a dons premonitórios: ela sabia que o Cruzado ia acabar mal. Quando o plano começou a fazer água, surgiram termos sinistros, como desabastecimento, maquiagem e ágio.
A carne bovina escasseou, a tabela virou ficção, formaram-se filas nos açougues, e helicópteros foram procurar gado. Cenas patéticas, mostradas por uma TV cada vez menos complacente. E, um dia, puf, acabou.
Temos, agora, um plano sem congelamento nem escassez, e a inflação é baixinha. Porém, a balança comercial anda arisca, o desemprego é sério e os juros, indecentes, a ponto de uma rede de lojas gabar-se, na TV, de estar cobrando "apenas" 8% ao mês.
Ainda por cima, este coroinha da economia vê os cardeais Maria da Conceição Tavares e Delfim Netto, miscíveis como água e óleo, desancando em coro o Banco Central no "Opinião Nacional", da Cultura, por causa do Banco Nacional. Mais que uma rima pobre, é sintoma de que o negócio está mesmo feio.

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