São Paulo, segunda-feira, 18 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A Previdência e a fábula do maratonista

JOSÉ MARTINS FILHO

O maratonista já tinha cumprido quatro quintos da corrida quando os organizadores da prova, por razões de economia de meios, fizeram saber que o percurso seria alterado.
Isso significava correr alguns quilômetros além do combinado. O maratonista tinha dado tudo do meio da corrida para a frente, após um começo cauteloso, mas confiante, e agora preparava-se para o "sprint" final.
Tinha planejado cada etapa de sua trajetória, tinha dosado suas energias conforme o ritmo da prova, mas agora que as antigas regras já não valiam mais, ele se sentia logrado e usurpado em mais de um sentido.
Essa pequena fábula, de invenção fácil e banal, talvez explique o impasse que cerca, há quase um ano, a mais visceral das reformas pretendidas pelo governo: a da Previdência.
Na vida real, alguns milhões de maratonistas se queixam e argumentam que, se tivessem tido conhecimento prévio das novas regras, teriam planejado de outro modo sua corrida, dosando de forma diferente suas energias, de modo a chegar em bom estado ao ponto final. Teriam feito melhor investimento de suas vidas, que não pertencem exatamente ao Estado nem às fábricas nem aos escritórios.
É papel do governo, claro, na condição de organizador e gestor dessa corrida monumental, dar suas razões para o prolongamento da reta de chegada: o sistema, dentro de alguns anos (quantos, é matéria controversa), terá falido. Tanto se demonstrou essa equação que já ninguém duvida que a reforma é necessária.
Independentemente de como se chegou a esse estado de coisas, cedo ou tarde a reforma terá de ser feita. Quanto a isso, há unanimidade.
Só não há concordância quanto ao modo de fazê-la. E aqui, parece-me, o governo comete alguns erros. O primeiro deles é pretender colher resultados imediatos da reforma, quiçá para cimentar os trunfos da administração em curso, o que implica o sacrifício inevitável da atual geração de contribuintes.
Esquece-se, todavia, que essa geração é a mesma que sofreu na carne a violência traumática dos sucessivos planos de estabilização, dos compulsórios da vida e até do confisco da poupança, para citar os mais recentes. É natural que reaja mal à tentativa de confiscá-la tempo de vida.
Isso explica muito da animosidade parlamentar contra o projeto Euler e, possivelmente, as resistências porventura existentes ao substitutivo do deputado Michel Temer.
Independentemente de o governo ver nos parlamentares discordantes uma súcia de reacionários e de desestabilizadores da moeda -algo comparável ao esforço incompreensível de transformar em réprobos os servidores públicos, aí incluídos os professores universitários-, deve-se também trabalhar com a hipótese de que alguns deles postulam a idéia bastante razoável de que, se a reforma precisa ser feita, que se faça nos limites impostos pelo estrito respeito aos direitos e expectativas de direito.
Afinal, rasgar contratos já firmados não é bem o que se espera do governo e do Parlamento.
Sendo o sistema previdenciário um contrato entre gerações, seria mais natural e lógico que sua reforma se faça nos limites do intervalo de gerações, especialmente se levarmos em conta que a geração atual vem honrando seus compromissos com a geração passada e com a futura.
Conhecedores das novas regras, os maratonistas de amanhã estariam em melhores condições que os de hoje para replanejar seu futuro, tratando de fazer seu pecúlio pessoal desde cedo ou optando, enquanto ainda jovens, por um fundo previdenciário privado -cujo amanhã, aliás, parece ser dos mais interessantes.

Texto Anterior: A lei e a universidade
Próximo Texto: Por que revitalizar o Proálcool
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.