São Paulo, terça-feira, 19 de março de 1996
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De quem reclamar?

ANDRÉ LARA RESENDE

O ritmo da vida moderna não nos deixa tempo para nada por inteiro. A leitura também é fragmentada. É difícil ler do início ao fim. Passa-se os olhos, lê-se em diagonal, para saber do que se trata.
Ando lendo muito picado. Desde que começaram a ser publicados pela Companhia das Letras, tenho sempre algum livro de Nelson Rodrigues na cabeceira e na pasta. Não há leitura mais compatível com o tempo restrito e a toda hora interrompido.
O tom coloquial e o obsessivo retorno aos temas e às personagens tornam irrelevante onde paramos e onde retomamos a leitura. Basta abrir uma página ao acaso para logo estarmos imersos no universo rodriguiano, o Brasil e o mundo dos anos 60 e 70 vivamente reconstituídos.
Deixo Nelson por um momento. Neste fim-de-semana o caderno Mais! trouxe um artigo de Susan Sontag. Tendo feito várias viagens a Sarajevo, Sontag observa que ao retornar as pessoas não querem saber do que ela sabe. Ninguém quer ouvir falar de sofrimento, horror e humilhação.
Como explicar essa enorme indiferença e a falta de solidariedade com as vítimas de um crime histórico aterrador? Por que essas atrocidades não despertam a indignação e a solidariedade dos intelectuais como despertou a Guerra Civil Espanhola dos anos 30?
A própria Sontag responde: não estamos mais nos anos 30 nem nos anos 60; já vivemos o século 21. Sem a identificação do fascismo e do imperialismo com o mal, já não há um esquema simples para nortear o pensamento e a ação.
Se os intelectuais dos anos 30 e 60 revelaram-se crédulos e ingênuos, os intelectuais de hoje são sombriamente despolitizados e cínicos. A própria noção de solidariedade internacional sofreu um declínio vertiginoso.
O mundo cada vez mais interligado sofre de um paroquialismo paradoxal. O capitalismo consumista é de tal forma vitorioso que houve um descrédito da política. Só a vida privada importa.
Na era das compras massificadas, os intelectuais, que são tudo menos pobres e marginalizados, têm dificuldade para se identificar com os menos afortunados.
Volto a Nelson Rodrigues. Crítico implacável das esquerdas, Nelson usou como ninguém seu extraordinário talento para ridicularizar os modismos da época. Trinta anos depois, as confissões de Nelson nos parecem pérolas de humor e clarividência.
Os intelectuais da varanda do Antonio's no Rio, indignados com as atrocidades no Vietnã, não tinham um minuto de atenção para o sofrimento na Rocinha. Dom Helder, preocupado com a fome do Nordeste, era incapaz de dar importância a fomes mais próximas. O paroquialismo carioca de Nelson foi maravilhosamente sintetizado por ele mesmo, ao dizer que assim que entrava na Dutra batia-lhe uma saudade insuportável do Brasil.
Anticomunista e paroquial, Nelson Rodrigues poderia ser identificado com o intelectual moderno de Susan Sontag. Nada mais equivocado. Segundo Nelson, falta a Marx a dimensão da morte.
Conta-nos que, certa vez, juntou-se a um amigo para reclamar, do marxismo, a alma imortal que ele nos tirara. Segundo ele, só uma meia dúzia de obstinados ainda levam a sério a vida eterna, e sem vida eterna a morte reduz-se a um aviso fúnebre, meia dúzia de coroas convencionais e o morto começa a ser esquecido em pleno velório.
Nada mais distante de Nelson do que o cinismo intelectual do século 21. Se já não é o comunismo que nos tira a imortalidade da alma, desconfio que, vivo, Nelson hoje se juntaria ao amigo para reclamar do capitalismo consumista.

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