São Paulo, terça-feira, 19 de março de 1996
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Nelson Carneiro, o homem público

HUMBERTO BRAGA

A desmemória nacional tem sepultado no limbo do esquecimento proeminentes vultos da nossa história que, de quando em quando, o devotamento de um pesquisador exuma e recompõe para o reconhecimento e a admiração dos contemporâneos.
Para alguns a injustiça se revela ainda mais precoce e a indiferença mais desconcertante. É o caso de Nelson Carneiro, cuja morte não suscitou o interesse público que a sua grande vida fez por merecer.
Meu conhecimento de Nelson data de minha infância remota, nos primeiros anos da década de 30, na Bahia. Esta vivia então dias trepidantes de paixão política, como aplauso ou ataque em torno da figura marcante do interventor Juracy Magalhães.
O também jovem advogado Nelson Carneiro aderiu ardorosamente à corrente autonomista que combatia o governo. E pela sua atuação irrequieta, logo se tornou uma das figuras mais notórias da vida pública baiana.
Em 1932 ele se associou inflamadamente à insurreição estudantil em solidariedade aos revolucionários paulistas. Isso o conduziu à experiência das prisões, das agressões físicas e da deportação narradas nos seus livros "22 de Agosto" e "Palavras Leva-as o Vento". O amor à democracia não o abandonou na velhice, por isso não se rendeu ao regime militar.
Não irei reconstituir a bem conhecida trajetória política de Nelson Carneiro, que representou no Congresso três Estados -Bahia, Guanabara e Rio de Janeiro-, alcançando relevo desde o primeiro mandato.
Mas desejo acentuar uma singularidade: ela foi muito mais orientada para o serviço público do que para o poder pessoal. As duas coisas não se opõem. Nos verdadeiros líderes a busca do poder se ampara na íntima convicção de sua indispensabilidade para o êxito de um objetivo político.
O estadista pode ser identificado pela capacidade de estabelecer convergência entre sua ambição de mando e um grande interesse público. Mas o que se observa no paralelo entre essas duas motivações é a esmagadora preponderância da primeira.
Assim, política consistiria fundamentalmente na luta pelo poder pessoal. E este tem o seu principal "locus" no governo, isto é, no Executivo. Ora, Nelson Carneiro, apesar de sua projeção nacional, só uma vez, já quase no término de sua vida pública, concorreu numa eleição para cargo executivo, mas sem esperança de vencê-la.
Foi na disputa pelo governo do Rio de Janeiro, em 1990. Ouvi dele que não abrigava ilusões quanto à possibilidade de derrotar Leonel Brizola, mas aceitara candidatar-se para fortalecer a legenda de seu partido.
A longa carreira política de Nelson transcorreu fulgurantemente no Legislativo. Lá ele abriu espaço (apresentou 1.771 projetos de lei!) para -embora militando quase sempre na oposição- atingir sua finalidade suprema: a de promover uma verdadeira revolução jurídica no Brasil com profundas transformações nas normas do direito de família.
É impossível apresentar aqui o elenco dessas leis. Basta assinalar sua ação realmente redentora para a mulher brasileira, até então relegada à vil condição da incapacidade relativa.
Foram da autoria dele a emenda e a lei do divórcio, o estatuto da mulher casada, as leis de proteção à companheira e muitas outras mais.
Por isso muitos, com justiça, o aclamaram como o legislador do século, atributo mais glorioso do que os títulos habitualmente prodigalizados aos tribunos eloquentes e aos administradores operosos. Assim podemos subscrever as palavras de Carlos Heitor Cony proferidas em 1986: "Acredito que Nelson Carneiro merece o título e a função de senador vitalício, não pelo Estado do Rio, mas pelo Brasil... Sua presença em nossa evolução social é maior que a da maioria dos presidentes da República".
Até na atividade privada despontava nele o espírito público. Advogado notável, não cuidou de enriquecer (ao morrer só tinha em seu nome um carro velho) e sim de defender causas que pudessem ser utilizadas como bandeiras em suas pelejas cívicas.
O poder pessoal não fez falta ao renome de Carneiro. Dele não precisou para afirmar de modo indelével sua grandeza como homem público.

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