São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 1996
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Mea culpa

HEIGUIBERTO NAVARRO

"Padre. Tenho cometido muitos pecados ultimamente", desabafou um operário aflito, ajoelhado no confessionário da igreja.
"Que tamanha culpa você carrega em seu coração, meu filho?" -perguntou uma voz serena e melodiosa do lado de dentro.
"Sabe, padre, eu estou empregado. É. Eu tenho um emprego. Não ganho muito, mas eu tenho em emprego. E o pior, estou registrado em carteira e tudo o mais."
"Mas, meu filho, por que sentir-se culpado de algo que todos os operários do mundo inteiro têm?"
O diálogo é uma caricatura da realidade. Pode parecer exagero, mas tudo leva a crer que começa a existir um sentimento generalizado de culpa entre os trabalhadores pela crise do desemprego no País.
Afinal, só se ouve dizer que a culpa pela falta de competitividade das empresas brasileiras é do custo da mão-de-obra, do "custo Brasil", no qual, entre outros pontos, estão os encargos sociais, que tornam os "nossos" produtos impraticáveis no mercado de economia globalizada.
Esse sentimento atinge, de certa forma, até sindicatos, que encontram barreiras para fazer o contraponto entre os trabalhadores.
(É comum encontrar dificuldades de conscientização e mobilização de uma categoria profissional em momentos de crise de desemprego. Foi assim em todas elas. Nesses casos, nota-se a tendência da individualização do operário, que prefere ficar quieto em seu canto "para não ser percebido", quando, ao lado, seus companheiros estão sendo demitidos. O sindicato tem de trabalhar dobrado e com criatividade para cumprir o seu papel e reerguer a categoria).
A crise de desemprego que vivenciamos é diferente das outras. É estrutural. Ou seja, o que está havendo, na verdade, é a eliminação de postos de trabalho. Operário demitido não é substituído por outro.
No chão da fábrica, o trabalho humano é feito, cada vez mais, por máquinas modernas e robotizadas.
Em outras palavras, os efeitos perversos da reestruturação industrial e produtiva em andamento no mundo e no país podem até levar algumas vezes ao aumento da produtividade, como já dissemos anteriormente, mas sempre com perdas de postos de trabalho e com ameaças às várias conquistas sociais, como redução salarial, condições de trabalho, benefícios e até a solidariedade de classe.
Diante da incompetência empresarial e da deliberada omissão do governo, inventaram que o culpado é o trabalhador brasileiro e o seu sindicato, que, insensíveis e radicais, não querem abrir mão do seu bem-estar social.
Então, surge uma bateria de declarações de ministros, deputados, empresários e até de sindicalistas cooptados, acusando o assalariado pela falta de competitividade das empresas brasileiras.
Nos jornais, os maiores espaços estão separados para os acusadores. Nas rádios e TVs, o horário nobre, sutilmente, privilegia os mesmos senhores. E em casa, diante do massacre, o trabalhador, em sua poltrona, assiste a tudo e se vê no banco dos réus, com aquele sentimento de culpa.
Exagero ou não, essa campanha malandra está no ar. É parte de um plano geral que começou com a abertura da economia, com a liberação indiscriminada das importações de bens e serviços, com a eliminação de quaisquer diferenças de tratamento entre capital nacional e estrangeiro e a livre entrada e saída de capitais do país, como proclama o discurso neoliberal.
Para completar, o sindicalismo vendido da Força Sindical, por meio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, assina um acordo com a Fiesp e entrega aos patrões conquistas do movimento operário internacional. Patrimônio erguido com lutas, perseguições e até mortes de milhares de trabalhadores do mundo inteiro.
Pelo acordo, empresas podem contratar livremente sem obrigação de registrar o empregado e ainda isentam-se do pagamento de vários tributos e direitos trabalhistas.
Livres dos encargos, dizem os engenheiros do absurdo, as empresas ganham competitividade e contratam o desempregado, entre 10% a 25% do pessoal efetivo na fábrica.
Fácil perceber que a covardia do capital, aliada ao sindicalismo entreguista da Força Sindical, acabará praticando apenas a rotatividade e continuará com o mesmo número de funcionários -só que uma boa parte constituída de bóias-frias urbanos, sem lenço e sem documento, com seus direitos precarizados.
Pelos meios de comunicação não se ouve e nem se lê nada a respeito do verdadeiro custo da mão-de-obra do brasileiro, que recebe US$ 2,41 dólares por hora trabalhada.
Na Coréia o trabalhador custa US$ 5, em Cingapura US$ 5,12, na Itália US$ 14,82, nos EUA US$ 16,40 e na Alemanha US$ 24,87, incluindo todos os encargos sociais.
Nem por isso, nesses países, os trabalhadores são responsabilizados e punidos pelas mudanças que ocorrem na economia mundial.

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