São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Filósofo Daniel Dennett defende que homens são robôs biológicos

JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA

JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA; JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BOSTON

Há semelhança entre macacos, homens e robôs? Aos olhos do filósofo Daniel Dennett, 54, diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Universidade Tufts (Boston, EUA) e membro da equipe de criação do robô Cog, eles são todos a mesma coisa. Ou quase. A diferença seria apenas de complexidade, não de natureza ou qualidade. Macacos e homens seriam robôs.
"As pessoas querem ouvir que há algo em nós que nos torna diferentes de qualquer réplica mecânica, que temos uma posição única no universo", disse ele à Folha, em Boston. "Mas a inteligência artificial diz que somos robôs biológicos, e o darwinismo, que descendemos de robôs biológicos".
Dennett é um dos mais reconhecidos pensadores contemporâneos da filosofia da mente e da IA. Começou sua vida intelectual como estudante de matemática e lógica. Foi aluno do filósofo da lógica americano W.V.O. Quine e do filósofo da mente inglês Gilbert Ryle.
Publicou, entre outros, "Brainstorms" (MIT Press, 1978) e "Consciousness Explained" (Little & Brown, 1991), além de "Darwin's Dangerous Idea" (A Idéia Perigosa de Darwin). No momento, escreve "Kinds of Minds", que será publicado no Brasil, sem data prevista, pela Rocco.

Folha - Como o sr. explica o sucesso do livro de Roger Penrose, "A Mente Nova do Rei" (Campus), segundo o qual somente organismos biológicos têm a "coisa certa" com a qual pensar?
Dennett - Não creio que Penrose seja levado a sério pelos pesquisadores da IA, nem pelos que fazem ciência cognitiva. Mas por que então este livro se tornou tão popular? É que as pessoas se sentem ameaçadas e até mesmo oprimidas pela idéia de que a IA é factível. Elas querem ouvir que há algo que nos torna diferente de qualquer tipo de réplica mecânica. E quando um matemático de renome como Penrose afirma que a IA não será possível, é confortável ao extremo.
Queremos ouvir que temos uma posição única e privilegiada no universo. É pela mesma razão que as pessoas, até há pouco tempo, torciam o nariz para o darwinismo. Em meu último livro, "Darwin's Dangerous Idea", tento exatamente combater esse tipo de preconceito. Tento mostrar que, em um certo sentido, darwinismo e IA estão muito próximos: a IA diz que nós somos robôs biológicos, e o darwinismo, que descendemos de robôs biológicos.
Folha - Quais são as novas concepções que podem ser tomadas pela IA como base teórica?
Dennett - Um exemplo é o trabalho de Rodney Brooks, com o Cog, no MIT, ao qual estou ligado. O debate filosófico sobre o que os computadores podem ou não fazer seria mais proveitoso se se concentrasse na identificação das verdadeiras dificuldades e na sugestão de novas metodologias, e não na simples tentativa de provar o que pode ou não vir a ser feito no futuro.
O trabalho de Brooks é diferente da "IA clássica", mas ainda é uma forma de "IA forte". Ao menos em relação a seu programa científico, que envolve robótica e abandona uma concepção de inteligência como algo "desencarnado" ou pura manipulação de símbolos.
Folha - O sr. poderia falar da teoria que desenvolve em seus primeiros livros, como "Brainstorms"?
Dennett -Minha idéia é que podemos atribuir estados mentais não apenas a seres humanos, mas a qualquer tipo de criatura ou artefato cujos comportamentos formem uma sequência inteligível. Isso inclui animais e computadores. Quando se observa como esses comportamentos formam uma sequência racional, pode-se atribuir à criatura ou ao artefato uma "mente". Ele se torna, assim, um sistema intencional. O que chamamos "mente" resulta da atribuição (às vezes provisória) de estados mentais a outras criaturas.
A idéia de sistema intencional pode ser vista também como uma metodologia de pesquisa, que se mostrou bastante útil em casos como o da psicologia do desenvolvimento, que começou a estudar quando as crianças passam a considerar outras crianças ou animais como sistemas intencionais.
Folha - Em "A Consciência Explicada", o sr. desenvolve uma teoria da consciência, a "teoria dos múltiplos registros". O que ela diz?
Dennett - A idéia que desenvolvo nesse livro é que nunca teremos uma boa teoria da natureza da consciência enquanto não nos livrarmos do "mau hábito" da teoria cartesiana da mente.
A idéia do cartesianismo é que existe um lugar funcional privilegiado, que eu chamo de "teatro cartesiano", onde tudo ocorre e que constituiria a consciência. A idéia deste teoria é que as várias partes do cérebro estão sempre competindo entre si simultaneamente. Sempre há uma que acaba por predominar e é substituída por outra que predomina, e assim sucessivamente. Não há na verdade uma vencedora, pois as vitórias são efêmeras. A vencedora é "aquela que se tornou consciente", mas qualquer uma pode se tornar consciente a qualquer momento. Não há linha divisória rígida e o sistema é sempre dinâmico.
Folha - O sr. acredita que um dia será possível construir um computador inteligente, uma réplica mecânica da consciência humana?
Dennett - Sim. Isso será possível, ao menos em princípio. Mas será extremamente difícil.
Folha - O sr. escreveu que não se pode construir um computador que sinta dor, uma vez que não sabemos o que é a dor. O mesmo pode ser dito sobre a consciência?
Dennett - Minha intenção era chamar atenção para o fato de que nosso conceito cotidiano de dor é bastante incoerente. Se não conseguirmos desenvolver um conceito preciso do que seja a dor, com certeza não seremos capazes de replicá-la de modo mecânico. O mesmo se aplica à idéia de consciência.
Não acredito que seja impossível construir um robô que sinta dor, embora, é claro, "sentir dor", para tal robô, seria diferente do que chamamos de dor. O robô Cog terá um dispositivo que o fará sentir dor. É fundamental para qualquer organismo (e para um robô) ser capaz de sentir dor. A dor é um dispositivo extremamente útil para a sobrevivência. É um sinal de alerta.
Folha - Mas, para se sentir dor, não é preciso estar consciente do que se sente?
Dennett - Não necessariamente. Sei que o que vou dizer será contrário às noções habituais, mas creio que é possível sentir dor sem estar consciente dela. Isso ocorre em condições especiais, mas há situações cotidianas que ilustram esse fato: quando dormimos numa má posição e sentimos dor em algum músculo, nós nos viramos e procuramos outra posição. Quando dormimos não estamos conscientes. Nesse caso, teríamos dores inconscientes. Mas isso só ilustra o que acabei de dizer: não temos um conceito claro do que seja a dor.

João de Fernandes Teixeira é professor no departamento de filosofia da Universidade Federal de São Carlos (SP) e colaborador pleno do Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Centro de Ciência Cognitiva da Tufts University (Boston, EUA).

Colaborou José Luis Silva.

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