São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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O golpe improvável

RENATO JANINE RIBEIRO

Tem-se falado em golpe de Estado. Parece-me, porém, apesar do risco de fazer tais previsões, inviável um pronunciamento militar bem-sucedido contra as instituições democráticas.
Um golpe militar é a negação da política. Esta é arte da palavra, da persuasão, da negociação: nela, quem discorda de nós é respeitado como adversário. Já a atividade militar por excelência, a guerra, consiste em enfrentar o inimigo. Por isso, no conflito armado, se calam as vozes, cessa o diálogo e só resta uma última razão, a dos canhões.
No caso da intervenção militar na política, que é a atividade civil por excelência (pólis em grego e civitas em latim significam "cidade"), toda divergência se torna traição. Sem dúvida. Mas, para o golpe ter êxito, é preciso estar claro quem é o inimigo e que causa se defende. Ora, hoje essas duas exigências básicas do militarismo político estão muito perturbadas.
Quem foi o grande inimigo instituído pelos militares, o alvo central de seu imaginário durante a longa ditadura, se não o comunismo? Mas este se dissolveu, perdendo eficácia até como fantasma. Teríamos então um golpe sem inimigo? Isso é difícil.
Outro alvo poderia surgir para o descontentamento nas fileiras. Seria a corrupção, a desorganização vigente no poder civil. Mas, contra ela, o remédio militar consiste basicamente em disciplina e austeridade. É viável uma tal receita num momento em que a economia aposta em desregulamentação e em consumo?
O curioso é que os militares ficaram num certo impasse. Sua tradição, desde que prevaleceu na caserna a opinião de direita, em 1964, foi a aliança entre disciplina e anticomunismo, entre a austeridade e o capital, que tutelou o país, a sociedade e a economia durante duas décadas. Mas hoje os elementos que até poucos anos atrás se fundiam mostram-se inconciliáveis. Vejamos.
O anticomunismo perdeu o sentido e não foi substituído à esquerda por nenhum alvo comparável (quem acreditará que o PT seja ateu e pretenda trair a pátria, como se dizia dos bolchevistas?). Mais: um eventual golpe teria que apostar no ataque à corrupção. E não se trataria só da corrupção de funcionários públicos, mas da que aparece como degradação dos costumes.
Essa corrupção mais abrangente está ligada ao desnível social, com pessoas ganhando muito dinheiro e, desde a era Collor, sem vergonha de ostentar seu luxo. É isso, aliás, o que faz do telefone celular um símbolo que cinde nossa sociedade, soando como fator de orgulho para uma parte e como exibicionismo ofensivo para outra: quando falta o essencial, quando se desgasta o salário, inclusive dos militares, como admitir que o segmento enriquecido publique o seu desperdício?
Um governo militar, até para satisfazer seu público interno (as fileiras), teria de adotar medidas ditas moralizadoras, de repressão ao consumo dito perdulário. Ora, isso iria na exata contramão do que as elites econômicas hoje pretendem, que é a globalização da economia, a desregulamentação, a liberação do consumo.
Por isso uma junta militar não saberia agir. Só teria sustentação ideológica contrariando o que seus velhos aliados, as classes dominantes, querem. Ora, mesmo que ideologia e prática costumem ser bem diferentes, aqui o antagonismo seria completo.
E que dizer do nacionalismo? Como justificar a venda das empresas estatais, em cuja construção as Forças Armadas se empenharam no passado?
A rigor, um golpe exigiria uma troca de alianças: um golpe de esquerda? Mas isso é ainda mais difícil! Como diz Bresser Pereira, o que distingue a direita é a preferência pela ordem, mesmo à custa da justiça, enquanto a esquerda opta pela justiça, mesmo a preço da ordem.
Por suas emoções e formação, os militares optam pela ordem e se perfilam à direita. Mas, quando a direita dispensa a disciplina e organiza o mundo pelo capital, que resta a eles? Politicamente, pelos valores de nacionalismo e austeridade, os militares até podem simpatizar com a esquerda. Mas a cisão íntima é tão forte, entre emoções e valores, que qualquer intervenção dotada de futuro fica barrada.

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