São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 1996
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Apertem os cintos

MOACYR SCLIAR
"É ISSO UM AVIÃO RONCANDO NA MINHA SALA?"

Malcom Lowry
Supondo que a morte do piloto tenha ocorrido num certo país tropical, e supondo que na torre de controle estivesse um daqueles impávidos burocratas que resistem a tudo e a todos:
- Alô, torre... Alô, torre...
- Saco! Esses caras não deixam a gente em paz. Pronto, é a torre. O que há, rapaz? Fala logo, que eu ainda tenho muito papel a carimbar e está quase na hora do meu café.
- É o seguinte, torre... O piloto desse avião... Ele não se mexe...
- E o que é que você quer? Que eu vá aí mexê-lo? Não enche, cara. Tenho mais o que fazer.
- Desculpe, torre, mas tenho de insistir... É que o cara não se mexe porque... Porque ele está morto.
- Morto? Como é que você sabe que ele está morto?
- Bem... Ele está com o olhar vidrado, não respira, o coração não bate...
- Só? Isso não basta. Preciso do atestado de óbito, preciso de um atestado da Associação de Pilotos dizendo que este Fulano deixou de fazer parte da mesma por falecimento. Preciso também de um xerox da identidade, CPF e título de eleitor, junto com duas fotos três por quatro, de gravata e se possível sorrindo. Anotou tudo?
- Anotei. Mas...
Quanto à pensão dele, o senhor deve ficar atento às últimas reformas da Previdência. Ele contribuiu 35 anos? Tem carteira assinada? Porque se não tem essas coisas, só fazendo parte do Instituto de Previdência dos Congressistas.
- Desculpe, torre, mas o caso não é de Previdência... O caso é saber como vou pousar este avião...
- Pousar o avião? Esqueça, meu caro. Sem habilitação de piloto? De jeito nenhum. O mínimo que posso lhe exigir é o certificado de um curso de preparação de pilotos com seiscentas horas de duração em estabelecimento reconhecido por lei. E acho bom você se matricular logo, porque daqui a pouco estou saindo para o café, e o meu café é sagrado.
- Torre... Por favor, torre...
(Ouve-se uma explosão abafada. O burocrata suspira mais uma vez -saco!- e sai da torre. Não sem deixar, claro, o casaco na cadeira.)

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