São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 1996
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Peça "O Livro de Jó" vai viajar pelo Brasil

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Mais de um ano em cartaz, levantando prêmio sobre prêmio, Antônio Araújo agora quer levar "O Livro de Jó" ao país todo.
Em abril faz duas semanas em Curitiba. Em maio, Salvador. Em junho, festival de Belo Horizonte. Em julho, Rio. E talvez Porto Alegre, Brasília. Antes, neste fim de semana, vai para a Colômbia.
O mineiro Antônio Araújo, "29 para 30 anos", fala em entrevista de seu melhor momento e de seu melhor espetáculo, sobre Deus.
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Folha - Você acredita em Deus?
Antônio Araújo - Tem uma frase do Guimarães Rosa, do "Grande Sertão", que eu gosto, "Deus existe mesmo quando não há". É difícil. O fato de ter feito "Jó" diz respeito a essa procura, esse desejo.
Folha - Deus e a religião interessaram a outros diretores, como Romero de Andrade Lima, mas de um ponto de vista católico, brasileiro. O seu caminho é outro.
Araújo - A gente trabalha um texto que é uma obra-prima da poesia hebraica. Que está na Bíblia, mas diz respeito tanto à tradição cristã quanto à judaica. O que interessa é a questão de forma ampla. Uma questão que diz respeito à religiosidade, que é o sofrimento, num questionamento de Deus.
É interessante, porque no texto bíblico você tem a mulher de Jó, que nega Deus, e isso diante de Jó e dos amigos, que tentam entender o sofrimento. Então, não sei, apesar de ter tido formação católica e isso estar de alguma forma impregnado no trabalho, a proposta é discutir uma questão sem estar filiado a uma tradição católica.
Folha - O questionamento da fé é central hoje no mundo. O que levou a fazer a peça foi mais o questionamento da fé ou o sofrimento, até com a presença da Aids?
Araújo - Tem dois aspectos que levaram ao "Jó". O primeiro foi aprofundar a discussão sobre o sagrado, sobre Deus. No "Paraíso Perdido" eu sentia que a gente tinha lidado com o tema num primeiro nível e tinha desejo de aprofundar. E "Jó" discute teologia. "Paraíso" era mais sensorial. Em "Jó" a palavra é fundamental.
E "Jó" abria a possibilidade de falar de algo que estava importando muito, que é a Aids. É interessante notar que o Jó paciente é o que perde os filhos, os bens e fica tranquilo, "Deus me deu, Deus me tirou". Quando a peste cai, você tem um Jó revoltado, que quer entender as razões de Deus.
Folha - E a fé? É a questão central, me parece. A fé de Jó está sendo colocada à prova...
Araújo - É um dado interessante de estar fazendo "Jó", porque você tem a fé levada ao limite...
Folha - Você mencionou Guimarães. Graham Greene dizia o mesmo. E no fundo não existe a fé em Deus, hoje. Em Jó, existe.
Araújo - Mas em Jó você não tem uma fé cega. Jó leva às últimas consequências a crença em Deus. Corre o risco até de perder a fé. Tem uma frase, "não me deixe perguntar se não te vejo porque estou cego ou se aqui não estás". Ele leva a possibilidade da descrença ao limite. Neste sentido, existe uma identificação com a gente.
Mas não sei se concordo que a contemporaneidade não acredita em Deus. É algo que a gente discute no grupo, de que a gente passa por uma universidade em que ser inteligente é ser ateu. E a maioria tem formação religiosa. E tem a terceira instância, que é o misticismo de shopping. Você tem três instâncias -a religião tradicional, o ateísmo profissional, o misticismo- que não dão conta do sagrado... Não sei se é tranquilo, assim, dizer, "eu não acredito em Deus".
Folha - Como você passou do realismo niilista de Franz Xavier Kroetz, de "Oberosterreich", o seu início, para o sagrado?
Araújo - Tem momentos do trabalho. Eu fui ler o "Oberosterreich" e fiquei tocado com o realismo sintético, vazio. É engraçado, porque Kroetz me deu certeza que eu queria ser diretor. Quando olho afetivamente os trabalhos, é a peça com que eu tenho relação mais forte, porque foi a definição.
E depois dele eu fiz o trabalho que trouxe o sagrado. Um monólogo, num restaurante vegetariano. (ri) A questão do sagrado estava no texto, e a atriz que fazia é muito ligada nisso. Foi a última peça dela, e virou monja. Não é mais atriz.

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