São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 1996
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Como confiar na polícia brasileira?

JAMES LOUIS CAVALLARO

Era madrugada de sexta-feira. Belo Horizonte dormia quando um Gol pegou três rapazes, de 14, 15 e 16 anos, no centro da cidade.
Sinistramente um carro da Polícia Civil fazia a cobertura do Gol. Pouco depois, um homem ligou para o jornal "O Estado de Minas" e disse que acabara de pegar três meninos de rua e os matara, dando a localização dos corpos e informando também que havia uma carta em uma caixa dos Correios, num bairro próximo dali.
Acionada por um segurança do jornal mineiro, a Polícia Militar encontrou os corpos num local chamado Taquaril. Os adolescentes foram mortos com tiros na cabeça e tinham as mãos amarradas com cordas de náilon.
A carta, por sua vez, foi encontrada, conforme o telefonema anônimo explicava, numa caixa dos Correios. Nela está o motivo do crime e sua autoria. O motivo: aumento de salário. Os autores: um grupo de policiais civis, autodenominado Reação.
No comunicado às autoridades eles reclamaram do salário, afirmando ser a baixa quantia recebida a responsável pelo extermínio de menores. O grupo ainda escreveu frases assumindo que vai continuar a atuar, como por exemplo: "Proteger a cidade e apagar os insetos com a operação presunto" e "O ritual de sangue não pára mais".
Infelizmente, em anos de pesquisas e análises sobre a violência policial no Brasil, a Human Rights Watch/Americas pode chegar à conclusão de que episódios como esse de Minas não são casos isolados.
Em 1994 publicamos "Final Justice: Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil", que trata de grupos de extermínio em quatro Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Espírito Santo.
Constatamos que, em geral, são formados por membros das polícias Militar e/ou Civil e que a impunidade é o fator principal para a manutenção desses grupos. Raramente os casos são investigados e, quando isso acontece, as apurações são malconduzidas, já que são feitas pela própria polícia.
Essas "auto-investigações" acabam criando um círculo vicioso e de uma onipotência mais que temerosa: a polícia mata, conduz as investigações e não há culpados. Em janeiro passado lançamos um relatório sobre a violência e truculência da polícia fluminense.
"Violência x Violência: Violações aos Direitos Humanos e Criminalidade no Rio de Janeiro" causou enorme polêmica ao ser publicado, mas chega a uma triste constatação: de todos os casos pesquisados, apenas um teve a devida apuração, com o culpado sendo julgado e cumprindo pena.
Extermínios de crianças e adolescentes são um assunto de preocupação mundial. Entidades de direitos humanos internacionais se vêem chocadas com os crimes cometidos contra os direitos humanos no Brasil e talvez seja por causa da perpetuação de situações como essas que a imagem do país no exterior seja tão manchada.
Mesmo com o empenho do Ministério Público e do secretário de Segurança Pública de Minas Gerais para encontrar os culpados a investigação desses casos depende, em boa parte, da mesma Polícia Civil, da qual alguns integrantes assumiram a responsabilidade pela chacina. Surge então a necessidade de atuação das autoridades federais para investigar de forma independente esse crime.
Existe já, dentro do Plano Nacional de Direitos Humanos, um projeto de lei que visa federalizar os crimes que atentarem contra os direitos humanos. Tais crimes, mesmo cometidos na jurisdição dos Estados, passariam a ser investigados pela Polícia Federal e julgados pela Justiça Federal. A intenção do projeto de lei do governo é evitar a impunidade que impera em todos os casos de violação aos direitos humanos.
Casos como o da chacina de Minas sujam cada vez mais a imagem do Brasil no exterior. Se o Brasil não quiser ser visto como um país onde policiais podem matar crianças e ficar impunes, se quiser ter a imagem de um país no qual o governo pode responder às violações mais graves em matéria de direitos humanos, então é hora de passar à Polícia Federal a competência para apurar crimes cometidos por policiais.

James Cavallaro, 33, advogado, é diretor no Brasil da Human Rights Watch/Americas.

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