São Paulo, sexta-feira, 5 de abril de 1996
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O "fisiologismo circunstancial"

JOSÉ EDUARDO DUTRA

O fisiologismo é uma prática inevitável na atual cultura política? Não, certamente que não. Casos concretos de administração municipal e estadual, de vários partidos e não só do PT, testemunham a favor da moralização da política e da gestão pública democrática.
A participação da população na elaboração e fiscalização da execução do orçamento tem sido um dos instrumentos fundamentais para neutralizar os interesses de grupos habituados à prática do fisiologismo. Esse caminho prevê a mais ampla consulta à sociedade, levando-a a partilhar o poder com o Estado.
FHC escolheu o caminho inverso: 1) as alianças políticas que o levaram ao Planalto perpetuam o estamento patrimonialista (R. Faoro, "Os Donos do Poder") e 2) a manipulação deliberada das regras do jogo político-institucional, que compra maiorias.
É o caminho do fisiologismo circunstancial (T. Jereissati) usado para obter a qualquer custo vitórias menores e passageiras, como no caso da CPI dos Bancos e na reforma previdenciária.
Não sendo sociólogo, certamente não tenho a erudição do sr. FHC, o presidente. Porém, como político e senador da República, atrevo-me a lembrar algumas das "Lições de Sociologia" do clássico Durkheim.
Se para Marx o conceito central em torno do qual giram as relações sociais é trabalho e para Weber esse conceito é razão, para Durkheim tudo gira em torno da moral. Não do moralismo, mas do que ele chama de moral cívica -conjunto de regras que determinam como devem ser as relações entre o indivíduo e a sociedade política.
A existência do Estado, enquanto poder constituído que é exercido por um grupo de funcionários "sui generis", do qual eu e o presidente fazemos parte, não elimina a existência de grupos sociais secundários (que vão das famílias às ONGs, por exemplo).
Ao contrário, "a força coletiva que é o Estado, para ser liberatriz do indivíduo, tem necessidade, ela própria, de contrapeso, deve ser contida por outras forças coletivas, isto é, por esses grupos secundários (...) é desse conflito de forças sociais que nascem as liberdades individuais." (Durkheim).
O processo de evolução rumo à descentralização do poder, da democratização ou como quer que se chame, descrito pelo sistema durkheimiano, consiste em trabalhar os dois lados da cidadania: chamar progressivamente o indivíduo à existência moral e manter uma disciplina moral (idem) que visa à sobrevivência da coletividade nacional e conduz à cada vez maior e mais ampla participação política.
Toda e qualquer ação que obstrua, desvie ou corrompa esse curso histórico se identifica com os esforços e interesses despóticos dos que se beneficiam do poder, mantendo o Estado isolado da sociedade. Autoritários, tratam de destruir os chamados grupos sociais secundários que servem de contrapeso na defesa da cidadania, para exercer o poder como déspotas.
Em qualquer país ou em qualquer partido podem ocorrer crimes, fisiologismos e comportamentos não-éticos. As consequências, porém, são bastante diferentes, de acordo com o país ou com o partido: pode dar punição, cadeia, execração pública pelos atos cometidos contra os interesses da nação.
Lá e cá existem políticos interesseiros e grupos poderosos por trás deles, mas onde há punição e condenação as condições de vida dos cidadãos comprovam a diferença entre um Estado governado por fisiologistas e um Estado democrático governado por estadistas.
O governo fisiológico e patrimonialista leva aos dramas de Corumbiara, Carandiru, Candelária. Os interesses dos donos do poder não respeitam regras, minorias nem os grupos sociais secundários que fazem a maioria da nação. Chegando ao Planalto, o voto virou cheque em branco.
Uma vez no poder, "l'État c'est moi", já dizia o rei de França. Só que o Brasil não é a França do século 18, e assim como os franceses acabaram com o despotismo, os brasileiros, mais cedo ou mais tarde, encontrarão seu caminho para o pleno exercício da cidadania e da democracia.

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