São Paulo, sexta-feira, 5 de abril de 1996
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O realista e o exemplar

FÁBIO WANDERLEY REIS

Segundo conhecida piada italiana dos tempos do fascismo, qualquer cidadão pode ser inteligente, honesto e fascista. Só que as três coisas não vão juntas: se ele é inteligente e honesto, não é fascista, se é fascista e inteligente, não é honesto, se é honesto e fascista, não é inteligente.
Pela mesma lógica cabe presumir que, ao contrário, podemos ter a combinação de inteligência, honestidade e, digamos, convicções social-democráticas. Como declarou o presidente da República, não é preciso ser burro para ser de esquerda. Ele poderia também dizer, certamente, que não é preciso ser burro para ser honesto. E a biografia do próprio presidente é a prova irrefutável da possibilidade de junção dos três atributos a um só tempo.
Desde que se viu levado a disputar e exercer a Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso tem sido exposto à necessidade de agir "inteligentemente" e buscar eficiência.
Na avaliação da ação que tem resultado dessa necessidade, algumas ponderações se impõem. Uma delas diz que a busca de eficiência será sempre condicionada pelo contexto, já que não há como abrir mão do diagnóstico cognitivamente tão acurado quanto possível da situação em que se atua.
Outra lembra que em política, especialmente, as situações tenderão a ser equívocas do ponto de vista dos valores envolvidos nas ações dos atores e, em particular, frequentemente haverá casos em que os meios disponíveis serão valorativa ou eticamente discutíveis.
À luz de ponderações como essas, o realismo que tem marcado a atuação de Fernando Henrique Cardoso seria defensável por referência a fins mais altos perseguidos em circunstâncias problemáticas e difíceis.
Fica, porém, a questão de como a ação do social-democrata honesto e inteligente poderá distinguir-se da ação do político desonesto ou do que busque, mesmo honestamente, valores ou fins que consideremos inaceitáveis.
Fora do apelo à luz retrospectiva de um futuro longínquo, que muitos de nós nem chegaremos a ver, uma resposta possível seria a do equilíbrio no uso do realismo, dadas as confusões que este costuma introduzir quanto aos compromissos básicos.
De vez em quando o social-democrata honesto dirá "não", socará a mesa e reafirmará com clareza suas lealdades, abdicará de espertezas e optará singelamente pela ação exemplar -até por reconhecer a contribuição que ocasionalmente também esta tenderá a trazer, mesmo de um ponto de vista instrumental ou de eficiência, à obtenção dos fins mais altos.
Fernando Henrique Cardoso precisava ganhar a eleição: fez a aliança com o PFL. Precisava assegurar clima simpático no Congresso em nome da "governabilidade": esquivou-se de vetar a anistia a Humberto Lucena (e, no mesmo momento, precisando preocupar-se com as finanças públicas, vetou o aumento do salário mínimo).
Tem, naturalmente, de zelar pela observância estrita da legalidade em movimentos reivindicatórios como os grevistas: jogou duro com os petroleiros.
Precisa estar nas boas graças de Antônio Carlos Magalhães, também em nome da "governabilidade": titubeou na condução do problema do Banco Econômico. Precisa vencer as resistências à aprovação das reformas constitucionais: recorre a práticas fisiológicas.
Precisa evitar a desestabilização do sistema financeiro: acolhe e respalda decisões discutíveis sobre o Banco Nacional e recorre a práticas fisiológicas para matar a CPI...
Sem entrar no problema da inteligência e acuidade factual da avaliação feita em cada caso, e mesmo admitindo que o governo atual segue sendo provavelmente o melhor que o país tem há muito tempo, creio que já fazemos jus ao murro na mesa. Que, a esta altura, já virá como surpresa.
Cumpre reconhecer que a política requer realismo, é a "arte do possível", segundo a velha máxima. Há outra velha máxima, no entanto, que diz que o poder corrompe. Por certo uma não se reduz à outra. Mas até que ponto um governo Fernando Henrique Cardoso, que muitos de nós vemos como efetiva e singular promessa de refundação exemplar, se disporá ao risco de vir a ser mera ilustração da segunda, à força de se valer da primeira?

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