São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A nova lei seca nos EUA e a erotização do risco

Vídeo e Internet fazem erotismo com imagens de fumantes

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Em horário comercial, na frente dos grandes prédios de Nova York, se reúnem grupinhos de fumantes; saem rápidos a dois, três, ou mesmo sozinhos, às vezes desafiando um tempo de cão.
Eles batem os pés de frio e não se sabe se a fumaça é cigarro ou condensação. Outros aparecem e desaparecem das sacadas dos arranha-céus.
Na Broadway, na hora do intervalo, em noite de chuva, patéticos espectadores agarrados em seu cigarro se cerram uns contra os outros para ficar debaixo da estreita marquise que protege o ingresso do teatro.
Fumar aqui é sobretudo decididamente vulgar. Vítima de um vício para ele irresistível, o fumante aparece como um fraco. Ou pior: um fracassado ou subdesenvolvido, entregue a um prazer suicida para pessoas que não precisam nem querem se eternizar nesta Terra.
A proibição poupou os bares com licença alcoólica. O raciocínio devia ir assim: se você for degenerado ao ponto de beber, poderá fumar -e vice versa. Os pubs irlandeses se tornaram, assim, de asilo para amadores de cerveja em fumódromos.
Ora, apesar, ou por causa da densa neblina do ambiente, são entre os lugares mais alegres do convívio nova-iorquino. Conversas barulhentas, happy hour. Os empreendedores da noite entenderam rápido: e abrem cada dia mais bares que são "fumares".
Quem viajar, pode conferir como exemplo o recém-aberto Cafe Aubette, na 29th Street entre Park e Lexington Avenue: o bar abre nos fundos para uma loja com grande seleção de charutos ao redor da lareira. Há um clima que evoca os "speak-easies" da lei seca. Uma espécie de promessa implícita da noite ainda jovem, o prazer infantil de uma prática quase proibida celebrada em comum e -por isso mesmo- a facilidade de encontro e troca com desconhecidos e desconhecidas.
Vídeos fumantes
Tem mais: a imagem de uma mulher fumando está se tornando algum tipo novo de objeto erótico. Não é só nostalgia das divas do cinema dos anos 40 e 50, que lançavam fantásticas volutas de fumo. É quase um novo fetiche.
"Smoke Signals", um boletim para fumantes distribuído só por assinatura, por exemplo, começa a resenhar e comentar "smoking videos", "vídeos fumantes" (não necessariamente para fumantes, aliás).
Para obter o boletim, basta manda um e-mail para smokesigs@aol.com ou telefonar para 401/434-7476. Quem pratica a internet, pode até contemplar alguns breves trechos destes vídeos na página de um de seus produtores, Edward Luissier (http://magi.com/~shadow/coherent.html).
Trata-se de uma meia hora de planos quase fixos sobre mulheres fumando. A câmera registra o lento progresso da combustão do cigarro, das aspirações e das exalações. Aborrecido, não é? Mas o espectador mal se libera da sensação de contemplar uma cerimônia erótica.
Mais simples ainda, sempre pela Internet, é visitar "shadowland" (http://magi.com/~shadowland/html). Aqui, páginas de fotografias em close de mulheres fumando esperam os aficionados.
Atenção: as imagens não são necessariamente sugestivas. O cigarro não aparece como o magro substituto de um pênis. Mas, de novo, sem bem saber porquê, o espectador percebe que está contemplando um objeto erótico. O simples fato de contemplar uma mulher fumando parece chamar um olhar pornográfico.
Rejeição
Um pequeno episódio recente me ajudou um pouco a entender o mistério.
No mês passado, no aeroporto de Guarulhos, esperava meu vôo para Nova York. Sentei bem embaixo de um cartaz que anunciava o espaço reservado aos fumantes, abri um livro e acendi um cigarro.
Ao meu lado, estava sentado um jovem yuppie, um pouco bovino pelo excesso de proteínas predigeridas, concentrado na leitura de uma volumosa lista de compras. Indignado, levantou-se, foi sentar do outro lado da jovem mulher que o acompanhava e começou em voz alta a decretar medidas discriminatórias contra fumantes.
Quando chegou a propor que fumantes só fumassem nos banheiros (o que me preocupou pelo destino assim reservado a todos os incontinentes não fumantes, condenados a aliviar sua bexiga em uma densa neblina), levantei os olhos e gentilmente lhe apontei o cartaz sob a proteção do qual eu me situava.
A coisa piorou, o homem se irritou e conclamou que era inimaginável: eu era velho e ainda por cima procurava briga. Deixei para lá, pois estava de bom humor. Mas sobretudo lhe fui grato: associando em seu desprezo velhos e fumantes, ele me ajudou a entender de que pode-se tratar a intolerância dos não fumantes.
Não cabe aqui, nem a mim, discutir dos efeitos do fumo sobre os fumantes passivos. Quem quiser conhecer mais do que os gritos de alerta geralmente propagandeados pela mídia, pode consultar, na Internet, "Smoking from all sides" (http://www.cs.brown.edu/people/lsh/smoking.html) e aí confrontar os documentos pró e contra.
Na obstinada e crescente perseguição e exclusão dos fumantes, há algo mais do que preocupação com a saúde de todos. Fumar parece contradizer não só um ditado de bom senso, mas um ideal dominante de vida, que associa no repúdio, por exemplo, velhos e fumantes, que por isso constituem progressivamente uma indecência, uma obscenidade.
Desde o século passado, com o movimento higienista, a medicina veio progressivamente substituir a ordem moral religiosa periclitante em uma sociedade cada vez mais laica. As práticas higiênicas de vida em comum, por exemplo, vieram regrar a convivência social. As ditas perversões sexuais, outro exemplo, foram transformadas de pecados em doenças (ver sobre este processo dois livros de Jurandir Freire Costa: "Ordem Médica e Norma Familiar", Paz e Terra, 1979 e o recente "A Face e o Verso", Escuta, 1995).
O risco
Aos poucos, em suma, a boa saúde se constituiu como muito mais do que uma componente do bem-estar: como um dever ético. Consequência: se o pecado se tornou doença, a doença se tornou pecado.
Perguntar-se-á: por que não? Porque o narcisismo -necessária consequência de nosso individualismo- não encontraria assim um limite? Não seria esta uma maneira de evitar que ele acabe em uma paixão autodestrutiva e que cada um se queime justamente como um cigarro?
Talvez. Mas as contrapartidas são numerosas. Não só o fumo, também a velhice e a doença se tornam assim paradoxalmente objetos de reprovação moral e razões de vergonha.
A troca social é contida, limitada pela obrigação de não gastar sua saúde. Dormir cedo, o jogging da manhã, o treino da tarde e a comida balanceada produzem uma verdadeira avareza social, em que a necessidade moral de estar e permanecer em forma conforta cada um no bem fundado de sua prudente distância dos outros.
Mais ainda: o risco maior é que, justamente por ser uma contravenção à obrigação moral de boa saúde, o fumo por exemplo venha a ser muito mais do que um prazer pouco saudável: que ganhe todo o charme de uma prática que contradiz a moral dominante.
Nos vídeos de fumo talvez seja isso que os aficionados contemplam: uma mulher que, fumando, declara estar acima da ética da boa saúde e, portanto, disposta a gastar seu corpo pelo prazer.
Parece uma conclusão excessiva: então considerem que há alguns meses nas revistas especializadas apareceu um novo tipo de anúncio para procura de parceiros ocasionais.
Bem ao lado daqueles que garantem o respeito do "safe sex", outros prometem aceitar exclusivamente sexo sem proteção. Declaram assim que procurarão e darão prazer além do limite da moral dominante.
O apelo não deve ser facilmente resistível. Quando a saúde se torna dever moral, uma erotização do risco mortal é quase inevitável.

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