São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A consciência para além do bife

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A doença da vaca louca provocou a mais dramática queda de consumo de carne vermelha já registrada num país desenvolvido. Mas a tendência é de que, passada a crise, o assunto seja esquecido e o consumo volte a crescer.
Para Jeremy Rifkin, presidente da Fundação das Tendências Econômicas de Washington, no entanto, a vaca louca deveria ser o mote para a carne vermelha ser eliminada da dieta das sociedades humanas contemporâneas.
Ele escreveu um livro, chamado "Beyond Beef: The Rise and Fall of the Cattle Culture" (Além do Bife: Ascensão e Queda da Cultura do Gado), no qual tenta provar que a carne vermelha é uma ameaça à sobrevivência ecológica e econômica da humanidade. Rifkin é também o autor de "O Fim dos Empregos" (Ed. Campus, recém-lançado no Brasil).
"A sempre crescente população bovina afeta diversos ecossistemas da Terra, destruindo habitats em seis continentes. É um fator primário da destruição de florestas tropicais e da desertificação do sub-Saara africano e do Oeste dos EUA e da Austrália", disse em entrevista à Folha.
Há 1,3 bilhão de bois e vacas no mundo, que ocupam 24% da área de terra útil do planeta. O peso coletivo dos bovinos é superior ao dos humanos.
O gado consome um terço de toda a safra de grãos do planeta, "enquanto um bilhão de pessoas sofre de fome crônica e desnutrição", argumenta.
"Enquanto estes morrem por falta de vegetais e cereais em quantidades adequadas, milhões no mundo industrializado morrem de doenças provocadas por excesso de carne de animais alimentados com cereais. São as doenças da riqueza: derrames, ataques cardíacos, câncer", afirma.
A produção de gado e o consumo de carne vermelha são "uma das maiores ameaças ao bem-estar futuro da Terra e da população humana", segundo Rifkin, que diz ter-se interessado pelo assunto a partir de conversas com um integrante de sua equipe sobre os males de uma dieta muito gordurosa.
Ele acha interessante que um súbito surto de interesse sobre o tema tenha ocorrido no mundo por causa de uma doença que é nova e ainda não atingiu muitas pessoas, apesar de problemas bem mais graves virem vitimando milhões de pessoas há tanto tempo e com pleno conhecimento público.
Apesar disso, Rifkin, 51, não perde a oportunidade para levantar suas teses sobre a carne vermelha a partir do incidente da doença da vaca louca.
Já em 1993, ele e sua organização haviam entrado na Justiça contra o governo dos EUA para exigir que se parasse de alimentar gado com restos de vacas e ovelhas, prática até hoje usual e considerada como possível causa da "encefalopatia espongiforme bovina" (BSE).
Apesar da sua ação legal, o governo dos EUA nunca ordenou a interrupção da prática. Agora, com o escândalo originado na Inglaterra, Rifkin acha provável que ela venha a ser proibida nos EUA.
Ele também acredita que haja casos da doença de Creutzfeldt-Jakob (CJD), o equivalente humano da BSE, nos EUA, embora o governo afirme não ter encontrado nenhum provocado pelo consumo de carne: "Ninguém acha o que não quer: quando quiser procurar direito, o governo vai achar", diz ele.
Rifkin alerta para outras enfermidades bovinas que ainda não se provaram transmissíveis para os seres humanos, mas que, a seu ver, provavelmente também podem afetar os homens. Entre elas, as versões bovinas da leucemia (BLV) e da Aids (BIV).
Depois de ter analisado centenas de estudos antropológicos sobre o papel da carne vermelha em diversas culturas humanas, Rifkin concluiu que "a mitologia do bife tem sido usada sistematicamente para perpetuar a dominância masculina, aprofundar divisões de classe e promover interesses nacionalistas e colonialistas".
O papel espiritual mais profundo que havia na identificação do boi e da vaca como ícones da virilidade e da fertilidade foram "dessacralizados e desnaturados", a seu ver.
No mundo contemporâneo, o ato de se alimentar com carne bovina perdeu o sentido de integração com a natureza que teve para povos mais antigos e se transformou em "mero processo produtivo".
"Reconsagrar nossa relação com os bovinos é um gesto de grande significação histórica", afirma Rifkin.
"Hoje, o gado é gerado por inseminação artificial e transferência de embriões: é alimentado para a eficiência do mercado, não para a saúde da raça: é monitorado por máquinas, injetado com químicos, constrangido, controlado, espremido e moldado para satisfazer requisitos industriais, do nascimento à morte."
As crianças do mundo industrializado, argumenta Rifkin, têm compreensão mínima do que sejam os animais que elas incorporam ao seu organismo três ou quatro vezes por semana. Elas crescem achando que a carne vermelha é apenas mais uma "coisa", como os brinquedos, as roupas, a televisão.
O utilitarismo da era moderna se fundiu com o processo racional de produção da tecnologia industrial e transformou o gado num elemento apenas manipulativo, cujo valor se mede apenas em termos de mercado, segundo ele.
"Como a própria natureza, o gado foi despido de seu valor intrínseco, reduzido à condição apenas de commodity", diz Rifkin.
Ele acredita que o gado pode continuar ajudando o ser humano com o leite, o couro, a força animal. Mas acha que o consumo de carne vermelha precisa acabar para ajudar a salvar o homem em quase todos os sentidos.
"Ir além do bife é transformar nossa própria concepção de comportamento apropriado em relação à natureza. Nós devemos apreciar a fonte de nossa sobrevivência", afirma.
Para ele, diminuir a quantidade de gado ainda terá a vantagem de reduzir a demanda de reservas de água e a emissão de gases que ajudam a formar o efeito-estufa (em especial o dióxido de carbono produzido nas queimadas de florestas necessárias para criar áreas de pastagem).
Mas Rifkin faz questão de ressaltar que esta deve ser uma decisão voluntária, a seu ver de grande conteúdo ético.
"No novo mundo que se está formando, milhões de seres humanos vão escolher deixar de comer carne vermelha para permitir que milhões de outros seres humanos possam obter as calorias mínimas para sobreviverem", diz.
Os efeitos sobre os habitantes dos países ricos serão muito positivos também, acredita Rifkin: menos doenças, menor preocupação obsessiva com a aparência de gordura no corpo, vidas mais longas, enormes economias em gastos de saúde com doenças cardíacas e câncer, menor agressividade nas relações sociais.
Se mais terra for liberada para a produção agrícola, Rifkin acha que também diminuirão a migração do campo para as cidades nos países em desenvolvimento e a emigração de países pobres para os industrializados.
"Ir além da cultura do bife é um ato revolucionário, um sinal do nosso desejo de nos reconstituirmos. Restaurar a natureza, ressacralizar a nossa relação com o gado e renovar o nosso próprio ser são processos que estão ligados entre si de maneira inseparável", afirma Rifkin.
Para ele, "a dissolução do complexo industrial do gado e a eliminação da carne vermelha da dieta da raça humana inaugurará um novo capítulo no desenvolvimento da consciência humana".

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