São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Vínculos da arte do retrato

ALBERTO ALEXANDRE MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA

LIVROS
Compreender o retrato -obra quase sempre de encomenda- como o fruto de forças em ação. Um pacto, "uma complexa negociação entre o artista e o retratado", no qual, tanto de um lado como de outro, entram em campo investimentos de toda ordem: necessidades pictóricas, psíquicas, afetivas, intelectuais, mas, também, estratégias de construção de imagem pública, de obtenção de cargos, de consolidação de projetos estéticos e/ou políticos.
Este é o ponto de partida de "Imagens Negociadas", de Sergio Miceli. A partir dos retratos produzidos por Cândido Portinari ao longo das décadas de 20 e 30, Miceli quer focar de modo distinto os complicados processos de construção cultural no Brasil, subvertendo, em alguma medida, a ótica predominantemente literária que costuma balizar as interpretações do nosso modernismo. Mais do que isso, quer problematizar as relações de artistas e intelectuais com os círculos dirigentes para desvelar uma imagem mais complexa, in-trincada, de nossa trepidante conformação social.
Para tanto, Miceli se detém no exame de dezenas de obras, nas quais Portinari retratou um amplo rol de estratos e personalidades: colegas de ofício no início de sua carreira, escritores influentes do período, gente do corpo diplomático, senhores e senhoras da elite carioca, figuras-chaves do governo Vargas. Diante de cada uma dessas imagens, o autor recupera ambientes, amizades, parentescos, dados materiais tanto do pintor como do cliente, tentando mapear "as redes informais" que alinhavam poder e cultura.
Sem dúvida, o que mais se destaca nessas leituras é a exatidão minuciosa com que Miceli repassa cada detalhe, cada índice da composição, para deles extrair uma "lição sociológica". No entanto -esta é a opinião deste leitor-, para uma visão mais abrangente dessas mesmas "lições" seria necessário, ao longo do texto, uma indagação mais profunda, verticalizada, de problemas propriamente pictóricos e literários. Ainda mais que muitos dos "objetos" em estudo são autores de grande complexidade, como Bandeira, Mario de Andrade, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima.
Retomando. Se, por um lado, "Imagens Negociadas" abre uma picada promissora para a problematização da nossa história cultural, para o estudo atento das relações entre imagem e poder, sendo, neste caso, um valioso instrumento de leitura, por outro, parece não querer explorar as várias perspectivas que entreviu.
Neste aspecto, percebe-se com clareza o pulso do cientista social, que traça nitidamente os limites de seu campo e a estes limites se atém. Se tal restrição é condizente com o projeto do autor, não deixa de ser dolorosa para o leitor, já que a matéria de base é a arte. Assim, um olhar menos comprometido com o registro sociológico sente falta de maior especificidade nos problemas de natureza artística, tanto quanto de rédeas mais largas para as inúmeras conexões entre poesia e plástica que o texto aponta, mas não desenvolve.
Só no fim, o leitor é informado de que "este trabalho vem se desenvolvendo no âmbito de uma ampla pesquisa -'História Social das Artes Plásticas no Brasil (1900-1995)'±", envolvendo vários estudiosos, sob a coordenação do autor. Neste caso, é bem possível que "Imagens Negociadas" ganhe em amplitude e sentido quando lido junto ao seu contexto de origem.
Por último, cabe alertar que a ressalva levantada não invalida, entre outros, o mérito da pesquisa, que faz deste livro importante fonte de consulta sobre o período. Fora isso, mais de 70 reproduções coloridas constituem ainda outro valor em si.

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