São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Empresas compram patentes de genes

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre 1981 e 1995, foram concedidas 1.175 patentes em todo o mundo para sequências de DNA humano, segunda pesquisa citada na última edição da revista científica britânica "Nature", de quinta-feira passada.
DNA -ou ADN, como ainda dizem uns poucos fãs de siglas em português-, é o ácido desoxirribonucléico, a molécula que contém o código genético, a "receita" para a produção de um ser vivo.
O DNA de um ser constitui seu "genoma", o conjunto dos "genes", as unidades do código genético que indicam as informações para a sua fabricação, aquilo que uma pessoa herdou do pai e da mãe.
Ou seja: são sequências que tratam da intimidade biológica das pessoas, aquilo que de mais íntimo elas têm -a "fórmula" para produzir outras iguais.
O principal do DNA é constituído por quatro "bases", adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T), cuja sequência na molécula -ATCGTAA etc- revela os genes.
As 1.175 patentes, cada uma delas relativa a um pedaço da receita de um ser humano, foram concedidas principalmente a empresas particulares -três quartos do total. São principalmente das áreas ligadas a tratamentos contra câncer e vírus, seguidos pelas doenças vasculares, fatores de crescimento e testes para diagnósticos.
Praticamente metade delas está nas mãos de empresas japonesas, e as outras estão divididas igualmente entre os EUA e o resto do mundo (quase que só a Europa Ocidental). Já as patentes detidas por instituições públicas, como institutos de pesquisa, estão principalmente nos EUA.
Resumidamente, a engenharia genética está espelhando a realidade econômica mundial. Mas não é só entre os países que essas relações são perceptíveis.
"Cada vez mais o conhecimento sobre o genoma está se tornando um elemento na relação entre indivíduos e instituições, geralmente aumentando o poder das instituições sobre os indivíduos", diz o pesquisador Richard C. Lewontin, da Universidade de Harvard, um dos principais críticos do determinismo biológico.
Os indivíduos passam a ser conhecidos não como pessoas, mas como genomas mais ou menos saudáveis. E as instituições -desde escolas até empresas, companhias de seguros de saúde, o sistema judicial, as Forças Armadas, o Estado em geral- têm interesse em conhecer a constituição genética daqueles com quem têm de se relacionar. Começou a era da discriminação pelos genes.
Por exemplo, os médicos já têm à disposição testes capazes de detectar futuras doenças em pessoas hoje sadias, ou apenas "predisposições" a doenças.
Hoje já é possível localizar a causa de quase mil doenças no seu respectivo cromossomo, a estrutura que contém o código genético presente em cada célula humana. Cerca de metade destas mil enfermidades já são localizáveis ainda com mais precisão, nos próprios genes.
O problema é que não existem seres humanos perfeitos. Todo mundo ou é doente, ou é um potencial doente. Há genes que causam doenças; outros meramente assinalam a predisposição ou uma leve propensão a um problema.
O número mais aceito, redondo, diz que um ser humano tem cem mil genes (as estimativas variam de 20 mil a 130 mil). Destes, cada pessoa teria entre algo entre cinco e dez genes capazes de, com o devido estímulo ambiental, fazer a pessoa ficar doente. Todos são portanto possíveis vítimas de discriminação. Do ponto de vista de uma empresa, pode não ser aconselhável contratar alguém que se sabe que pode cair doente no futuro, comprometendo sua capacidade de trabalho e o investimento que possa ter sido feito nele.
Curiosamente, mesmo com todo o genoma sequenciado, extrair resultados dele poderá ser demorado. Mesmo depois de todas as letras do código genético -os 3 bilhões de bases químicas da molécula de DNA- estarem enfileiradas uma a uma na memória dos computadores, "serão necessários talvez centenas de anos para decifrar essa informação", diz um dos principais "sequenciadores" do código genético, o pesquisador Leroy Hood, do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia).
Isso acontece porque o livro pode ser lido de diversas maneiras -o relacionamento entre os genes é complexo. E também porque cada ser humano tem um "genoma" diferente. Testes podem ser feitos em embriões em provetas. Um feto com traços indesejáveis pode ser abortado pelos pais, o que traz de volta a discussão sobre eugenia.
Depois que os nazistas tentaram "melhorar" a raça eliminando aqueles que consideravam inferiores -judeus, ciganos, homossexuais, eslavos, deficientes físicos etc- o termo costuma ser associado a racismo.
O geneticista brasileiro Oswaldo Frota-Pessoa escreveu um artigo sobre o tema na "Revista USP". Para ele, eugenia deveria deixar de ser vista como um palavrão. Frota-Pessoa defende uma "eugenia democrática", na qual as pessoas fazem a escolha, e não o Estado ou instituições. "Existe um tabu contra melhorar a espécie humana. Só que há séculos, através do ambiente, da educação, nós fazemos isso. A educação é a alteração sistemática do indivíduo. Por que não alterá-lo pelos genes?", pergunta o geneticista.

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