São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A nova colonização genética

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS

Folha - Nos anos 80, na onda da revolução informática, a inteligência artificial tornou-se a expressão máxima da ambição da ciência moderna; nos anos 90, na onda da revolução biológica, a engenharia genética parece ter-lhe acrescentado a vida artificial. O que significa essa tendência?
Vandana Shiva - Toda sociedade tem tecnologia. Tecnologia é um meio. Valores humanos, um fim. Desde as revoluções científica e industrial na Europa, a tecnologia tem sido alçada de sua condição de meio para preencher necessidades humanas à de finalidade e objetivo da aspiração humana.
Tal mudança também significou que a transformação tecnológica deixou de ser considerada e avaliada com base em valores humanos; ao contrário, a existência humana passou a ser considerada segundo o padrão da rápida mudança tecnológica. Já não se perguntava mais quais seriam os impactos sociais, culturais e ecológicos da introdução em larga escala de uma tecnologia específica. Passou-se a esperar que a sociedade e a natureza se adaptassem à tecnologia; e, para essa adaptação violenta, nenhum custo social e ecológico foi considerado excessivo. É nesse contexto que as novas tecnologias estão surgindo.
As novas tecnologias da informação criaram a linguagem da inteligência artificial, as novas biotecnologias criaram a linguagem dos "constructos genéticos", das "invenções biotecnológicas" ou vida artificial.
Embora tais tendências tenham a pretensão e a arrogância de afirmar que o cientista está reconstituindo o mundo, superando a própria criação, a "inteligência artificial" e a "vida artificial" só podem substituir as funções de uma parte ínfima do espectro da inteligência e da vida em sua diversidade e complexidade; mas, mesmo que a capacidade de "substituição" da vida artificial seja muito limitada, sua capacidade destrutiva é muito grande.
Ainda não começamos a imaginar o impacto das novas tecnologias da informação e biotecnologias no planeta e na vida das pessoas. Visto que as novas biotecnologias baseadas na engenharia genética lidam com a manipulação da própria vida, os impactos serão muito dramáticos e irreversíveis. Como diz o biólogo Peter Wills, a engenharia genética é uma "baralhada da árvore da vida".
Folha - Como a engenharia genética relaciona a vida artificial com a própria vida?
Vandana - Embora a engenharia genética tenha o poder de mexer com os genes, não tem o poder de "produzir vida". As mudanças por ela introduzidas nas formas de vida provocam reações muito grandes; no entanto, seria um erro ontológico assumir que as formas de vida são feitas como os artefatos mecânicos e eletrônicos.
A primeira patente de formas de vida geneticamente engenheiradas foi concedida em 1981, quando a General Electric e um de seus funcionários, Ananda Chakravarty, requereram junto às autoridades americanas o patenteamento de uma bactéria Pseudomonas geneticamente engenheirada. Chakravarty pegou plasmídeos de três tipos de bactérias e transplantou-os dentro de uma quarta; como ele mesmo explicou: "Simplesmente embaralhei os genes, mudando uma bactéria que já existia".
Mas, embora os engenheiros geneticistas não "produzam vida", no sentido em que um automóvel é produzido, eles realmente manipulam a vida. Tal manipulação é artificial no sentido de que são quebradas e atravessadas as barreiras entre as espécies, estabelecidas pela evolução -eles inserem genes de galinhas em batatas, genes humanos em carneiros, genes de escorpião em repolhos.
Essa vida artificial seria impossível sem a própria vida. No entanto, a indústria da engenharia genética afirma ter a capacidade de substituir a vida em sua diversidade pela "vida artificial". Manipular a vida com fins industriais e mercadológicos não pode substituir a complexidade e a riqueza da vida, que é mantida num delicado equilíbrio de interações dinâmicas.
A falsa idéia de que a engenharia genética é a nova criação e de que os engenheiros geneticistas são os novos criadores extrapola demais o poder e a inteligência dos homens e exibe a mesma arrogância e a mesma ignorância que levaram à devastação ecológica do planeta.
Folha - Por que a sra. considera a engenharia genética um perigoso reducionismo na ciência e conclama a uma mudança de paradigma?
Vandana - O reducionismo da engenharia genética é perigoso porque falseia a base da vida e nos possibilita improvisações com ela de um modo irresponsável, dentro de uma ignorância total das consequências ecológicas da mudança de genes através das barreiras das espécies. O reducionismo em que se baseia a engenharia genética é epistemológica e socialmente perigoso.
Epistemologicamente, porque cria um quadro muito simplificado de "o que é a vida". A engenharia genética perpetua a visão mecanicista dos organismos biológicos, nos quais os genes e o DNA são concebidos como átomos biológicos, os tijolos da vida. Presume-se que os genes são os únicos responsáveis pelas propriedades fisiológicas e morfológicas das formas de vida. No entanto, o DNA é uma molécula morta -ele não tem nenhum poder de reproduzir-se ou de determinar qualidades e características. O que é responsável pelo poder de reprodução dos organismos vivos e suas distintas características é sua capacidade de se organizar em interação complexa, tanto interna quanto externamente com o ambiente.
Em segundo lugar, ao excluir as interações e relações entre organismos e ambiente, e entre os próprios organismos, o paradigma reducionista exclui qualquer preocupação com as implicações ecológicas da engenharia genética. Assim, esta se torna ecologicamente perigosa e socialmente irresponsável, pois os impactos ecológicos são ignorados na própria construção do paradigma reducionista.
Por outro lado, uma ciência que quisesse desenvolver prognósticos ecológicos dentro de tais parâmetros não conseguiria enfrentar os novos riscos introduzidos pelo lançamento em larga escala de organismos geneticamente engenheirados (OGEs) no ambiente com propósitos comerciais.
Temos de superar o reducionismo por um imperativo ecológico. Só um paradigma não-reducionista pode apreender a complexidade dos sistemas biológicos e antecipar e considerar o impacto ecológico do lançamento de OGEs.
Folha - Em seu livro "Monocultores of the Mind", a sra. demonstra que a biotecnologia é uma ameaça real para a biodiversidade, que podemos considerar como a própria diversidade da vida. Estamos portanto diante de um novo tipo de predação, uma predação "high tech" que torna a violência do industrialismo e do desenvolvimento algo antiquado e superado?
Vandana - As novas tecnologias são, com certeza, uma nova forma de predação "high tech". Elas predam a biodiversidade e a diversidade de culturas e de sistemas de conhecimento do mundo todo.
O "valor agregado" pela biotecnologia tem por premissa a "destruição de valor" da riqueza intrínseca das espécies e a destruição do valor gerado de modos descentralizados e culturalmente plurais nas economias de povos que se baseiam na biodiversidade, pois suas comunidades locais utilizam e conservam a rica biodiversidade que herdaram e acentuaram.
Os Direitos de Propriedade Intelectual (DPI) são um componente essencial para criar espaço e proteger a predação; por isso, na esfera das formas de vida, chamamos Direitos de Pirataria Intelectual.
Em vez de canhoneiras em busca de terra e ouro, temos os bioprospectors buscando biodiversidade; em vez da bula papal de 1492, temos o regime de patentes ditado pela Organização Mundial de Comércio; em vez de Colombo, temos as corporações transnacionais. A nova pirataria é a segunda parte da "descoberta" da América por Colombo. Os métodos são mais sofisticados. Os impactos não são menos brutais.
No caso de povos indígenas, como o Hagahai da Papua Nova Guiné ou a Guaimi do Panamá, a coleta de seu material genético através do Projeto Diversidade do Genoma Humano está levando ao que se pode chamar de "garimpagem genética" ou "biopirataria". E não são só os povos indígenas que estão tendo seu material genético garimpado. John Moore, um paciente com câncer, teve suas células removidas, patenteadas e vendidas para o laboratório Sandoz, que já faturou US$ 3 bilhões com sua linhagem de células "Mo".
Na nova colonização através da engenharia genética e do patenteamento da vida, todo ser vivo é uma colônia em potencial -dos micróbios ao homem.
Folha - Alguns juristas afirmam que a erosão não está minando apenas a biodiversidade, mas também os direitos... e até o próprio direito. Será que poderemos ficar vivos com a vida artificial?
Vandana - Uma visão de mundo que empurra as espécies para a extinção ou as manipula para maximizar os lucros também destrói instituições sociais e valores éticos sobre os quais se baseia uma sociedade digna de ser vivida. A engenharia genética e o estabelecimento dos regimes de propriedade intelectual de estilo ocidental na esfera da vida significam uma negação da inteligência da natureza na evolução da diversidade e uma negação da inteligência nativa das diversas culturas.
Os Direitos de Propriedade Intelectual também significam uma erosão do arcabouço legal e das obrigações que têm protegido a biodiversidade e os direitos das comunidades locais, permitindo-lhes preencher suas necessidades básicas a partir de suas habilidades, conhecimento e recursos. Finalmente, o patenteamento da vida estabelece uma ordem imoral, na qual tudo tem um preço, nada tem sacralidade e não há limites para a manipulação.
Uma sociedade e uma economia fundadas na vida artificial exigem que as formas de vida se tornem "propriedade" e que todos os limites éticos e ecológicos sejam removidos. Em outras palavras, exige o desmantelamento das condições da vida.
Se tivermos que ficar vivos, a engenharia genética e as patentes precisam ser drasticamente restringidas e limitadas. É preciso pôr limites. Sejam quais forem, eles têm de ser baseados num amplo e extenso debate democrático em cada sociedade. Esse é o verdadeiro movimento pela democracia e a liberdade na era da vida artificial.

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