São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Um mundo natural no computador

PEDRO PAULO BALBI DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cientista da computação norte-americano Christopher Langton é, sem dúvida, o maior responsável pelo estabelecimento da vida artificial como uma disciplina científica distinta. Uma expressão bastante citada deste autor estabelece que o objetivo da área é levar o conhecimento atual da "vida-como-nós-a-conhecemos" até o ponto de atingirmos a noção de "vida-como-ela-poderia-ser". Neste sentido, vida artificial representa uma forma de "biologia sintética", numa tentativa de se criar exemplos de entidades vivas além da única forma que conhecemos: a baseada em carbono. Para tanto, outros substratos têm de ser usados, em particular aqueles in silico, isto é, aqueles que usam os computadores como o ambiente em que as formas artificiais de vida se desenvolverão.
Muito provavelmente, Tierra é o sistema de vida artificial mais amplamente conhecido no mundo. Tierra é um mundo de vida artificial onde uma população de programas -alguns deles com capacidade de auto-reprodução- competem por espaço em memória e tempo de processamento em sua máquina hospedeira. Aqueles que conseguem se replicar mais, ganham mais destes recursos, garantindo a sua sobrevivência. Várias características de projeto dos programas podem mudar durante a replicação, fazendo com que eles passem a ficar sujeitos a um processo evolutivo, o que, em última instância, leva ao surgimento de vários fenômenos ecológicos, como a ocorrência de parasitismo entre programas. Por tudo que tem sido possível mostrar com o Tierra em termos de evolução em um meio artificial, este sistema constitui um marco nas pesquisas em vida artificial.
O sistema Tierra foi escrito pelo dr. Thomas S. Ray, 41, um biólogo tropical que, por mais de 20 anos, tem estudado a evolução e a ecologia de uma variedade de organismos habitantes das florestas tropicais, sendo que a maior parte de seus trabalhos de campo foram conduzidas na Costa Rica, onde ele está ativamente envolvido em preservação das florestas. Ray é também professor associado nos departamentos de ciências da vida e saúde e no de ciências da computação e informação da Universidade de Delaware e pesquisador convidado no Departamento de Sistemas Evolutivos dos Laboratórios de Pesquisa em Processamento Humano de Informação da ATR (Pesquisa Internacional Avançada em Telecomunicações), no Japão.
Apesar de não ter tido treinamento formal em ciência da computação, Ray aprendeu sozinho a programar (na linguagem C) e começou a perseguir seus interesses em vida sintética, que culminaram com o desenvolvimento do Tierra. Seu trabalho com "organismos digitais" lhe valeu vários prêmios internacionais, entre os quais vale citar: o 1990 IBM Supercomputing Competition, o Digital Vanguard Award e o Japan Inter-Design Forum 1995 Grand Prix (concedido, de fato, a todo o Departamento de Sistemas Evolutivos da ATR, sendo que foi a primeira vez que o prêmio foi dado a cientistas, já que todos os vencedores anteriores eram artistas, entre os quais Akira Kurosawa e Issei Miyake).
Sendo inerentemente multidisciplinar, vida artificial está na confluência de várias disciplinas -tais como teoria da computação, inteligência artificial, física e matemática de sistemas não-lineares e biologia teórica. Além disso, a área é consequência dos grandes desenvolvimentos teóricos obtidos nas pesquisas dos chamados sistemas complexos durante os anos 80, bem como da disponibilização de poder computacional em níveis não facilmente disponíveis até então, mas necessário às simulações computacionais na área.
Desde que Langton usou a expressão vida artificial pela primeira vez, há pouco mais de uma década, o momento associado com a disciplina passou a crescer continuamente. Mas foi somente com Alife-2, o segundo Artificial Life Workshop, organizado pelo Santa Fe Institute -a meca da vida artificial em 1990-, que realmente marcou a consolidação da área.
Vida artificial não representa apenas mais uma forma de pesquisa básica que ficaria restrita ao ambiente acadêmico. Seu impacto em aspectos éticos e epistemológicos já é certamente uma realidade, tanto quanto seus produtos tecnológicos. Com relação à tecnologia, vale mencionar novas abordagens para robôs autônomos, bem como toda uma classe de novas técnicas computacionais de resolução de problemas, inspirada nos mecanismos evolutivos geológicos, que têm sido aplicadas com sucesso em muitos problemas reais da ciência e engenharia.
Na entrevista a seguir, realizada por meio de correio eletrônico, Tom Ray fala sobre as realizações e o futuro da vida artificial, da importância que a área está recebendo atualmente no Japão e sobre temas relacionados às formas digitais de vida, não apenas no contexto do sistema Tierra, mas também com relação a sua mais recente proposta de criação da primeira reserva animal de ciberespaço.
Folha - Tierra é um computador virtual que pode ser descrito como um mundo de vida artificial, em que a evolução é observada com pequenos programas de computador escritos em uma linguagem de programação simples que você projetou. Você poderia nos dar mais detalhes sobre o sistema?
Thomas S. Ray - Tierra foi escrito na linguagem C. Este código cria um computador virtual e seu sistema operacional, cuja arquitetura foi projetada de tal maneira que o código executável da máquina pode evoluir. Isto significa que o código da máquina pode sofrer mutação (mudando-se os bits aleatoriamente) ou recombinação (permutando-se segmentos do código entre diferentes programas), de forma a permitir que o código resultante ainda permaneça funcional por tempo suficiente para que seleção natural (ou, mais precisamente, artificial) possa melhorar o código ao longo do tempo.
Junto com o tal código C que gera o computador virtual, nós fornecemos vários programas escritos numa outra linguagem, que é a do computador virtual propriamente dito. Alguns deles foram escritos por um ser humano e nada fazem além do que cópias de si próprios na memória do computador virtual. Os outros programas evoluíram a partir do primeiro e servem para ilustrar o poder da seleção natural.
O sistema operacional provê ainda um sistema bastante elaborado de observação que mantém um registro de nascimentos, mortes, sequencia o código de cada criatura e mantém um banco de genes de genomas que tenham tido sucesso. Há também facilidades para automatizar as análises ecológicas, isto é, para registrar os tipos de interações que ocorrem entre criaturas. Este sistema resulta na produção de organismos sintéticos artificiais baseados em uma metáfora computacional da vida orgânica, na qual o tempo de processamento é o recurso "energético" e a memória, o recurso "material".
A memória é organizada em padrões de informações que exploram o tempo de processamento para a auto-replicação. A mutação gera novas formas, e a evolução procede por seleção natural à medida que genótipos diferentes competem por tempo de processamento e espaço de memória.
Comunidades ecológicas diversas têm emergido. Estas comunidades digitais têm sido usadas para examinar experimentalmente processos ecológicos e evolutivos, por exemplo, exclusão e coexistência competitiva, regulação de populações no contexto parasita-hospedeiro, o efeito de parasitas no aumento de diversidade da comunidade e o papel do acaso e fatores históricos na evolução. Esta evolução simplificada pode vir a ser uma ferramenta de extrema valia no estudo de evolução e ecologia.
Folha - Eu sempre considerei o Tierra como um modelo. É claro, não um modelo de toda a natureza, mas um modelo de, por exemplo, parasitismo, hiper-parasitismo etc. Lato senso, como um subproduto natural de sistemas de agentes coevolutivos (com recursos limitados etc.) e não apenas como uma metáfora, como você parece sugerir... Você vê o Tierra somente como uma metáfora?
Ray - Não. Eu vejo o Tierra apenas como evolução que tem como meio a computação digital. Se nós tivéssemos evolução no meio carbônico, em Marte, isso por acaso significaria que Marte é um modelo da "natureza"? E se não é, então isso é "apenas metáfora"?
Folha - Você poderia comentar sobre as motivações e os requisitos práticos que fundamentam a sua recente proposta de se criar uma reserva de biodiversidade para organismos digitais?
Ray - Minha pesquisa é sobre evolução. Para mim, a propriedade mais interessante da evolução é sua habilidade de gerar complexidade. A história da evolução orgânica na Terra sugere que a maior parte do aumento de complexidade que ocorreu durante todo o período de 3 a 4 bilhões de anos de história aconteceu em uns poucos eventos dramáticos, quando as maiores inovações ocorreram.
Entre eles, talvez o maior e mais dramático foi a explosão de diversidade do Cambriano, que durou aproximadamente 3 milhões de anos, tendo acontecido há aproximadamente 580 milhões de anos atrás.
Pensando nisso, no ano passado, eu propus a criação de uma região do ciberespaço, ampla, complexa e interconectada, que será inoculada com organismos digitais, os quais poderão evoluir livremente por seleção natural. O objetivo é estabelecer um análogo digital à explosão do Cambriano, no qual organismos digitais multicelulares (na forma de processos paralelos) crescerão espontaneamente em diversidade e complexidade.
Caso seja bem-sucedido, este processo evolutivo vai nos permitir achar a forma natural dos processos paralelos e distribuídos e vai gerar processos de informação digital extremamente complexos que utilizem integralmente as capacidades inerentes à nossa arquitetura paralela e baseada em rede. O projeto será financiado pela doação de capacidade ociosa de processamento de milhares de máquinas conectadas à rede, rodando-se a reserva digital como um processo de fundo de baixa prioridade nos participantes.
Em suma, o projeto de biodiversidade diz respeito à tentativa de se criar as condições que poderiam gerar uma explosão de aumento de complexidade em evolução digital. Eu gastei vários anos considerando alternativas distintas que poderiam funcionar, sendo que esta é a primeira que eu pensei que considero atraente. É difícil dizer quanta participação será necessária, mas o melhor que eu posso fazer é tentar e ver o que acontece (1).
Deixe-me apenas acrescentar que na reserva de biodiversidade digital nada será repetitível, porque o experimento será afetado por um ruído incontrolável vindo tanto do mundo orgânico quanto do digital.
Assim, se nós desligarmos o sistema, nós levaremos as espécies irrecuperavelmente à extinção, da mesma maneira como aconteceria a uma reserva de floresta tropical, caso ela fosse devastada. Se o experimento da reserva digital de biodiversidade for um sucesso, ele deveria passar a ser visto tal qual uma reserva de floresta tropical, e deveria se tornar um elemento permanente da rede: a primeira reserva natural do ciberespaço!
Folha - Você sempre se refere aos programas evoluídos no Tierra como "criaturas". Você realmente os vê como tal ou usa o termo apenas como uma metáfora? Mais precisamente, você vê as criaturas "tierranas" como entidades efetivamente vivas, apenas que em um meio artificial?
Ray - Sim, eu as vejo como organismos digitais.
Folha - Eu prometo que não vou polemizar, mas também não vou resistir à tentação de lhe pedir para fazer um comentário sobre o fato de você desligar o computador a cada dia e exterminar todos os organismos que você gerou durante o dia...
Ray - Há várias coisas que eu devo dizer aqui. Primeiramente, fácil vem, fácil vai...
Em segundo lugar, eu os criei, então eu posso destruí-los...
Em terceiro lugar, num sentido bastante real, eles não se foram, se eu tiver salvado a semente.
Eu posso absolutamente e exatamente recriá-los a qualquer momento que eu queira. O mesmo não é verdadeiro quando nós levamos uma espécie à extinção, ou quando nós matamos um organismo individual específico. ...Mas eu não salvo a sementes...
Por que se preocupar? Há de fato 232 sementes aleatórias e, provavelmente, uma quantidade infinita de configurações como resultado de aproximadamente 50 varíaveis ambientais que afetam o curso da evolução. Todas essas diferentes condições iniciais irão gerar um outro conjunto de indivíduos e espécies. Todas essas possibilidades que eu nunca terei a chance de rodar deveriam possuir o mesmo valor inerente que as poucas que rodo. Todas podem ser criadas ou recriadas a qualquer momento com a aplicação de um pequeno tempo de processamento. Eu não acho que aquelas que eu tenha efetivamente processado devam ter qualquer necessidade inerentemente maior de proteção ou preservação do que as outras que não o foram. Elas estão todas virtualmente presentes!
E, finalmente, minha esposa costa-riquenha costuma dizer: "Fico feliz por eles não serem reais, porque, se fossem, eu teria de alimentá-los e eles estariam espalhados pela casa toda".

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