São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A VACA LOUCA

Dez cidadãos britânicos apanham uma moléstia rara (Creutzfeldt-Jakob), que leva à descoordenação motora, demência e morte. Cientistas admitem que esses casos podem estar ligados ao consumo de carne bovina de animais que sofrem de uma doença com sintomas semelhantes, causada pelo vírus da Encefalopatia Bovina Espongífera (BSE).
E o caos se espalha pelo mundo. O Mc Donald's britânico deixa de servir hambúrguer. A União Européia e outros países baixam um embargo sobre a carne da ilha. Por fim, o Reino Unido anuncia que vai exterminar 38% de seu gado, a um custo de pouco menos US$ 5 bilhões.
A evidência científica para justificar o genocídio bovino é limitada. A prestigiosa revista científica "The Lancet" afirma que o máximo que se pode afirmar é que surgiu uma variante da Creutzfeldt-Jakob, pois as vítimas da doença apresentam um perfil diferente do das que usualmente eram acometidas pela moléstia. A OMS afirma que o risco de contágio pelo consumo de carne é mínimo.
A primeira constatação a fazer é a de que o cuidado com a saúde pública no Primeiro Mundo é incomensuravelmente maior do que o verificado em países como o Brasil. O caso presente é apenas um exemplo, ainda que bastante eloquente. Mesmo sem estar certos de que é a vaca quem está transmitindo a doença, por enquanto restrita a um pequeno número de casos, as autoridades já ordenam o extermínio de 38% de seu rebanho.
A desconfiança que surge, contudo, transcende a esfera da saúde pública. Quase US$ 5 bilhões, ainda que com auxílio da UE, é dinheiro demais para ser gasto devido a uma suposição de bases científicas ainda incertas. É possível que o anúncio do extermínio seja só uma satisfação para o público.
Uma vez que o pânico se instalou entre os consumidores, o governo britânico tinha de tomar uma atitude, a fim de não colocar a totalidade de seu rebanho sob suspeição, o que poderia significar perdas econômicas ainda maiores. Assim, anuncia-se que a parte do rebanho mais sujeita à doença será sacrificada no prazo de alguns anos, restaura-se pelo menos parcialmente a confiança do consumidor e evita-se o colapso do mercado. Quem vai verificar se ao longo dos próximos anos o gado condenado será mesmo exterminado?
Essa desconfiança não deve obnubilar o mérito das autoridades sanitárias tanto britânicas quanto dos países que proibiram a importação da carne produzida no Reino Unido. O fato de a evidência científica ser frágil não significa que o problema não exista. Pode ser apenas uma incapacidade dos técnicos de constatá-lo de modo claro e incontestável.
No caso da Aids, ainda antes que o HIV fosse isolado, perderam-se milhares de vidas só porque os cientistas não dispunham de provas suficientes para convencer os laboratórios a testar o sangue contra hepatite B e outros micróbios comumente associados aos portadores da doença.
Quando se trata de saúde pública, por mais dúvidas e objeções de ordem econômica que se possam levantar, todo cuidado é pouco.

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