São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Transpondo o oceano

ANTÓNIO GUTERRES

Sempre que participo num fórum econômico internacional há alguém que me pergunta, com genuína curiosidade, como é possível Portugal e o Brasil não tirarem partido, no domínio econômico, de um patrimônio cultural comum e de uma invejável complementaridade geo-estratégica.
Para um observador, o raciocínio é linear: o Brasil é uma grande potência econômica da América Latina. Portugal, além de porta de entrada na Europa, detém uma posição privilegiada no relacionamento com a África e com o Oriente, onde Macau desempenha já um importante papel de plataforma de negócios com a China.
O que falta, pois, para se potenciarem, com benefícios mútuos, as oportunidades de negócio que se oferecem aos empresários dos dois países?
O mesmo oceano que outrora nos juntou não poderá mais constituir, como no passado recente, um fator inibidor para os empresários de ambos os lados do Atlântico.
As trocas comerciais entre os dois países têm se limitado, pela parte brasileira, às exportações de matérias-primas agrícolas e, pela portuguesa, aos produtos alimentares, essencialmente dirigidos ao "mercado da saudade". Apesar de a União Européia ser o principal parceiro comercial no Brasil, o caminho aparentemente mais direto e fácil, via Portugal, está ainda por explorar. Mas há claros sinais de mudança.
É tempo de se encarar de frente o desafio da globalização numa perspectiva lusófona, ousada e agressiva.
O novo acordo-quadro de cooperação comercial e econômica da União Européia com o Mercosul prevê, no capítulo da cooperação industrial, um conjunto de medidas destinadas a incentivar as relações empresariais entre os dois blocos, por meio do encorajamento à cooperação entre pequenas e médias empresas.
Formação de joint ventures, redes de informação, transferência de know-how e de tecnologia, subcontratação, investigação aplicada, "franchise", concertação estratégica são temas decisivos para uma nova fase. Há que ousar.
Considero, portanto, da maior importância, nos tempos que correm, encontrar um novo ponto de equilíbrio entre a integração européia e a vocação atlântica e universalista de Portugal.
No fundo, um ponto de equilíbrio que passa em primeiro lugar e sobretudo pelo Brasil e pela África de língua oficial portuguesa; não só como uma comunidade de Estados a construir, mas também como um espaço de cooperação econômica dinâmica e intenso intercâmbio cultural.
E esse é um grande desígnio de Portugal: fazer da defesa da língua portuguesa no mundo uma questão central de identidade; dar coerência estratégica à política de cooperação em África; dar conteúdo prático, nos planos econômico, científico e cultural, à relação de Portugal com o Brasil.
Portugal -membro da União Européia; Brasil -membro do Mercosul, dois espaços econômicos inegavelmente destinados a se entenderem, insisto nesse ponto.
Por aqui se compreende facilmente que as relações Portugal/Brasil constituem uma prioridade do meu governo. Daí os planos definidos para se desenvolver, em termos práticos e adequados à realidade atual, essas relações.
É tempo de passarmos das palavras aos atos; estabelecer ligações vivas e atuantes; incrementar e dar expressão às relações econômicas; fomentar e potencializar as iniciativas culturais; redescobrir identidades próprias e lançar pontes de diálogo e convivência permanentemente ativas.
Tudo isso é possível com a vontade empenhada dos dois países, dos dois povos irmãos, unidos pelo fator determinante que é a língua portuguesa. Por isso reafirmo que a defesa da língua portuguesa constitui a chave mestra para uma porta que desejamos sempre aberta -a que liga Portugal e o Brasil, e continuará a ligar através dos tempos.
A língua portuguesa de que os portugueses que a criaram tanto se orgulham não é um exclusivo desse povo. Ela pode e deve ser enriquecida por todos os povos e países que a utilizam como língua oficial: é o caso dos países africanos que falam oficialmente o português e é o caso do Brasil, a nação irmã, a que nos unem laços indestrutíveis.

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