São Paulo, quarta-feira, 17 de abril de 1996
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O fígado e o cérebro

CLÓVIS ROSSI

São Paulo - Eleonora de Lucena, a secretária de Redação da Folha, retratou ontem com perfeição, na coluna ao lado, a angústia de uma fatia da geração dela, que não sabe bem o que dizer a filhos adolescentes e inconformistas.
O que me assusta, como já não tenho filhos adolescentes, é a hipótese de não ter o que dizer aos netos.
Nesses momentos, me vem sempre à memória uma frase que os espanhóis usaram muito quando sentiram que estava consolidada a democracia reconquistada depois de 40 e tantos anos de franquismo: "Contra Franco, vivíamos melhor".
Tudo era mais fácil quando o inimigo, suposto ou real, tinha uma face conhecida. O que vinha dele, quer se chamasse Francisco Franco ou regime militar (no caso do Brasil), era ruim por definição. Ou, mais exatamente, por defeito congênito.
Agora, tudo é mais complicado. Tome-se o caso de Delfim Netto, hoje deputado federal (PPB-SP). Antes, Delfim era o demônio preferido de todos os que não gostavam do autoritarismo.
Qualquer coisa que ele fizesse ou dissesse era recebida com um sorrisinho de escárnio. Bastava dizer "é coisa do Delfim" para automaticamente condenar a coisa como indecente, incorreta, malandra, o que se quisesse.
Ficaram, claro, resquícios. Não raro, leio Delfim no mesmo espaço ontem ocupado por Eleonora, o cérebro concorda em silêncio, mas o grilo falante da consciência sussurra: "Você não pode concordar com o Delfim".
O texto de hoje do deputado é um caso típico. Quase típico, aliás, porque não tem o humor corrosivo que Delfim habitualmente destila. Mas faz todo o sentido.
Talvez a única coisa que a Eleonora possa ensinar a suas filhas e eu a meus netos é a não pensar com o fígado. Nossas gerações foram condenadas a fazê-lo. Não foi bom.

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