São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 1996
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Renascimento

OTAVIO FRIAS FILHO

No discurso apresentado ao Colégio do México em fevereiro, quando falou o que pensa e não as banalidades que os políticos são obrigados a dizer, FHC qualificou a nossa época como "um novo Renascimento". Todos os pontos da exposição foram esmiuçados com a proverbial capacidade analítica do sociólogo-presidente, menos esse.
Ao desarrumar as relações sociais, toda revolução tecnológica provoca um enorme aumento da miséria, mas também da opulência. O Renascimento de FHC parece vinculado a essa expectativa econômica, de que a informática vai multiplicar a riqueza em proporções inimagináveis, e à crença de que a quantidade se converte de algum modo em qualidade.
Mas a escolha das palavras nunca é neutra. Na imagem empregada, a globalização aparece como uma aurora científica e artística, em oposição ao cinza glacial da era das ideologias, que seria a nossa Idade Média particular, com o comunismo fazendo o papel da escolástica, Moscou no lugar do papado. Existe algum fundamento nessa fantasmagoria?
Embora encoberto, latente, como se FHC não se sentisse à vontade fora da estrita sociologia, o tema não sai da sua cabeça. No ano passado, ao falar sobre chassis de carros, o presidente já mencionava uma volta à artesania, especulando que a informática abre uma era de criatividade na produção e -por que não?- na cultura.
Ainda que tudo não passe de devaneio ocioso, vale a pena comparar o nosso "Renascimento" com o verdadeiro, o das cidades européias dos séculos 14 e 15, até porque alguns traços em comum sugerem a aproximação. Aquela também foi uma época de efervescência tecnológica, de crescimento exponencial do comércio e de integração geográfica.
Como hoje, havia então uma grande ênfase na dimensão individual, em detrimento das experiências coletivas, assim como um padrão sensualista e um relativismo moral que é possível justapor à egolatria que identificamos como traço do nosso tempo. Mas as semelhanças, além de arbitrárias e um pouco forçadas, param por aí.
A utopia do Renascimento estava no passado, no modelo da Antiguidade Clássica do qual a humanidade teria decaído e que era preciso imitar para renascer. Embora a sensação de decadência seja forte entre nós, não temos um paradigma no passado, que desprezamos, nem no futuro, que desapareceu como utopia junto com o socialismo e a arte moderna.
O Renascimento era universalista, o homem era visto como uma unidade em qualquer tempo e lugar. Sob as aparências da mesma reivindicação, nossa época conduz ao efeito contrário. A própria explosão de possibilidades e produtos torna inviável abarcá-los todos; cada pessoa se fecha em seu gueto, na estreiteza de uma moda ou mania qualquer.
Parece não haver dúvida de que estamos em meio a um violento surto de riqueza e de miséria, de diversidade e de ecletismo culturais, de exposição das diferenças ainda que ao preço de sua pasteurização nas fórmulas de mercado. Mas a velha e boa Renascença não merece o insulto da comparação. É mais provável haver reeleição do que Renascimento.

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