São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 1996
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Ainda há juízes em Berlim

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO

Conta-se que Frederico 2º, da Prússia, pretendeu exigir que um moleiro lhe entregasse determinado terreno com o qual pretendia ampliar os jardins de seu palácio em Potsdam. À imposição, teria o moleiro tranquilamente respondido, em defesa de seu direito ameaçado: "Ainda há juízes em Berlim".
Essa conhecida frase tem sido apontada como um paradigma da confiança na independência do Poder Judiciário e representativa da certeza de que, violado o Direito, haverá a quem recorrer para obter-lhe a restauração.
Ante o despacho do eminente ministro Marco Aurélio no momentoso caso da votação da emenda constitucional relativa à Previdência, também os brasileiros podem dizer com a mesma confiança do moleiro de Potsdam: "Ainda há juízes em Brasília!"
Aqui não se trata de discutir o mérito da emenda ou a excepcional habilidade política do eminente constitucionalista deputado Michel Temer, aliás, meu fraterno amigo, em conseguir-lhe a aprovação. O que está em pauta é simplesmente um tema de direito.
O caso em si não propõe qualquer dificuldade jurídica. Pelo contrário, sua solução é óbvia e acessível mesmo aos leigos na matéria, desde que lhes sejam explicados os pontos de direito que estão em causa.
A decisão do ministro Marco Aurélio juridicamente não poderia ser outra. Sem embargo, para proferi-la, dado o excepcional empenho do governo em fazer aprovar de qualquer modo dita emenda, o ministro teve que exercitar a qualidade fundamental aos juízes, isto é, coragem moral e independência -atributos esses, aliás, que se constituem em apanágio do culto, experiente e notável magistrado que a prolatou.
É que, entre nós, os chefes do Executivo tradicionalmente exibem pretensão a poderes imperiais e visível descaso pelo Direito, nunca esperando contradita a seus propósitos. Assim, cumpre prestar a merecida homenagem a quem cumpriu sobranceiramente seu dever, em país no qual fazê-lo tornou-se comportamento aplausível.
Entretanto, repita-se, a questão posta em juízo é de simplicidade modelar.
Diz a Constituição, em seu art. 60, parágrafo 5º: "A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa". Como se sabe, em 6 de março a emenda em questão foi rejeitada.
Logo, não poderia a mesma matéria volver a ser apreciada na presente sessão legislativa. Contudo o foi, inconstitucionalmente, sob a forma de emenda aglutinativa.
Bastaria, pois, esse fundamento para se revelar imperativo o conhecimento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal -guardião da Constituição- e para que fosse deferida a liminar ante o evidente "periculum in mora". O ministro assentou-se ainda em duas outras razões extraídas do Regimento Interno. Nem sequer é necessário considerá-las, pois a simples ofensa flagrante à Constituição tornaria, de direito, inexorável a providência que tomou.
Dizer que aí está envolvida matéria insuscetível de apreciação judicial, por implicar conflito de Poderes, é afirmação inaceitável. À toda evidência o Judiciário pode apreciar qualquer lesão de direitos conforme dicção expressa do art. 5º, XXXV, da Lei Magna.
Ora, os deputados têm direito ao cumprimento do devido processo na elaboração legislativa ou na elaboração das emendas constitucionais.
Se o Supremo Tribunal não pudesse apreciar a conformidade do desenvolvimento de seus trâmites aos ditames constitucionais e aos do Regimento Interno, uns e outros não valeriam coisa alguma. Nem sequer seriam regras jurídicas, pois poderiam ser desatendidos pelos pretensamente obrigados a obedecê-las, sem possibilidade de que fosse corrigida a ilegitimidade. O que nelas se dispusesse seria de nenhum efeito.
Haver-se-ia de supor, então, que as regras em causa não foram estatuídas para valer, mas compostas apenas por jocosidade, em um momento lúdico, no qual constituintes e depois congressistas, tomados por um espírito hilário, houvessem resolvido produzir um simulacro de regras jurídicas apenas para se divertirem com a perplexidade que provocariam nos cidadãos.
Se o eventual violador de regras jurídicas fosse o único com poderes para aferir se foram ou não violadas, isso equivaleria a entregar o galinheiro aos cuidados da raposa. Ora, nenhum exegeta que se preze interpretaria o Direito atribuindo-lhe a instauração de absurdos, incongruências e inocuidades.
A Constituição e as leis não existem para serem respeitadas apenas pelos cidadãos, mas para se imporem a todos, aí incluídas as autoridades públicas.
O dever de respeitá-las, inclusive quanto à forma de produzir os atos pertinentes às respectivas funções, é a garantia de que as "regras do jogo" não ficarão a depender, em cada caso, nem dos caprichos nem dos desejos das maiorias eventuais. É isso o que confere a todos e a cada um a segurança de viverem em um Estado civilizado. Por isso, disse Yering: "A forma é inimiga do capricho e irmã gêmea da liberdade".
A Constituição é a fortaleza erigida pela sociedade contra possíveis desmandos dos exercentes do poder.
Logo, não haverá supor que, ao erigi-la, admitiu-se que sua contradição ficaria isenta do controle jurisdicional capaz de abortar efeitos do pretendido desmando. Deveras, na pitoresca frase do inesquecível e iluminado publicista Geraldo Ataliba, paladino do Direito e das liberdades republicanas: "Ninguém construiria uma fortaleza colocando-lhe portas de papelão".

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