São Paulo, sábado, 20 de abril de 1996
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Há um século o Brasil afunda com Canudos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Daqui para o fim do ano vamos ter nos suplementos literários e nas revistas culturais do país histórias sobre a nossa guerra por excelência, a guerra brasileira que não acaba nunca, a de Canudos. Como a primeira expedição contra o arraial do Conselheiro ocorreu em novembro de 1896, daqui a pouco vão começar as repetições, adições, reavaliações. O local propriamente dito onde ribombaram os sermões de Antonio Conselheiro e os canhões da República não existe mais. Está sob as águas do açude de Cocorobó.
O fotógrafo Evandro Teixeira, que durante meses e meses fotografou tudo que ainda sobra de Canudos, vai publicar em breve seu livro aterrador, conselheiral, glauberiano, debussiano. Porque Canudos tem sua "cathédrale engloutie", a igreja sufocada pelas águas de Cocorobó.
Para as fotos de Evandro há um texto da jornalista Ivana Bentes, que conta como Cocorobó teve seu dia de Quincas Berro D'Água. Getúlio Vargas, que adorava "Os Sertões" e o lia para os filhos, começou a fazer ali um piedoso açude, como quem põe uma pia de água benta numa igreja.
Mas as obras caminharam muito lentas, Getúlio se matou, o tempo passou e, conta Ivana: "Em 1968, num ano excepcionalmente chuvoso, as águas encobririam, em questão de dias e para sempre, terra, casas, escombros do arraial do Belo Monte e da segunda Canudos". Entre as boas e as más intenções que sempre nos governam, Canudos acabou "submersa pelo Estado Novo getulista com acabamento pós-64, queimado, dinamitado, alagado em cem anos de uma feroz ditadura militar".
O fato é que acabou entrando água demais. Um morador atual da região disse a Evandro Teixeira que o problema ali não é propriamente de seca e sim de cerca. Quem tem dinheiro compra tudo que pode às margens do Cocorobó. Os descendentes do Conselheiro não têm nada. Tiram do açude uns baldinhos dágua. E se benzem quando, no tempo da seca, uma torre da igreja reaparece como um pedaço antigo de pão, molhado em café frio.
Seja como for, as grandes comemorações de Canudos se apoiarão sobretudo no livro que a respeito dessa guerra escreveu Euclides da Cunha. "Os Sertões" virou pedra angular da nossa história. Sua visão é dramática, verbosa às vezes, mas no fundo é lúcida, nítida, e constitui um fluído vital que não deixa o passado morrer. Ele descreveu com tanta profundidade aquele Brasil por saber que tão cedo não viria outro, se é que vem.
Na corrente "Revista Brasileira" da Academia Brasileira de Letras o filósofo Sérgio Paulo Rouanet trata de Canudos num artigo leve mas esclarecedor. Cita, sobre a campanha, crônicas de jornal em que Machado de Assis mostra que Canudos foi guerra não entre um Brasil arcaico e monárquico do Conselheiro e um Brasil moderno, o do Rio de Janeiro e da República.
Tratava-se, isto sim, de guerra entre um Brasil arcaico e outro um pouco menos, já que tinha, este último, a rua do Ouvidor, e nessa rua havia joalherias, confeitarias e até alguma livraria francesa. É claro que então a guerra mal começara, que os "Sertões" só sairiam seis anos depois e que a opinião de Euclides provavelmente coincidia então, no fundo, com a de Machado de Assis.
Ou coincidiu sempre, só havendo aí um fosso intransponível entre o pessimismo entediado de Machado e o pessimismo fulgurante (se é que existe tal coisa) de Euclides.
Expedições militares perdiam combates para o Conselheiro, jornais eram empastelados no Rio. O Brasil "moderno" temia que afinal de contas aqueles bárbaros ganhassem a guerra. Lendo Machado e lendo Euclides, Rouanet vai comparando: "...é preciso resistir à tentação de ler em Machado coisas que talvez não estivessem nele. O que é certo é que tanto ele como Euclides discordavam profundamente dos mitos conspiratoriais que circulavam no Rio a propósito de Canudos. (...) Não há em Machado propriamente uma antecipação de dialética euclidiana (e adorniana) da civilização enquanto barbárie, mas certamente ele acreditava, como Euclides, que no conflito entre o país moderno e o país arcaico o Brasil oficial nem sempre estava ao lado da modernidade.
A cena do sertão não era assim tão diferente da cena urbana -bastaria que Canudos tivesse jornais e teatros para ficar igual ao Rio. (...) o fanatismo juntava três mil jagunços e os transformava em massa de manobra de um regime teocrático na cena urbana, a corrupção juntava três mil pessoas num curral eleitoral, ou as inventava, nas famosas eleições a 'bico de pena"'.
A verdade é que as fotos que a gente vê hoje, tiradas por Evandro, parecem tiradas há um século. É bem verdade que nossos militares, se lá se deixassem fotografar agora, teriam aspecto diferente: os uniformes mudaram muito. Mas os tabaréus são igualzinhos. Como se fossem os mesmos e que, em tempo de seca, viessem de novo à tona, ajoelhados no fundo de Cocorobó. É como se não tivessem trocado nem de camisa, de sandália, de desesperança.
É deles talvez que Euclides sente falta num estranho texto que escreveu em 1908. Nesse ano ("Os Sertões" eram de 1902), já era uma glória nacional. Foi prestar sua última homenagem a Machado de Assis, que morria em sua casa de Laranjeiras. Já sem Carolina ao pé do seu leito derradeiro, era normal que estivesse cercado de amigos e até, conta Euclides, de "um grupo de senhoras - ontem meninas que ele carregara nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de família".
No entanto, nesse artigo que então publicou no "Jornal do Commercio", Euclides estranha que só estivessem, na sala principal, "Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio". Euclides ficou chocado. Achou pouquíssima gente. "Um escritor da estatura de Machado de Assis só deveria extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção universal".
Euclides deu graças aos céus quando apareceu um jovem bem jovem e bem desconhecido, para dizer adeus ao mestre. O moço deu seu nome a José Veríssimo, mas Euclides não o revelou a ninguém. Preservava assim a grande última frase do seu artigo: "Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade".
Aqui entre nós, acho que Euclides tinha querido encontrar cercando Laranjeiras, o Rio, e indo até a rua do Ouvidor, rudes homens de sandália, rolando nas mãos os chapéus de palha. O menino a quem Euclides chamou, não sem alguma arrogância, Posteridade, em breve estaria enterrado também. O que ali ficara faltando era o seu Brasil trágico, que não acaba nunca.

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