São Paulo, sábado, 20 de abril de 1996
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Sem terra e sem nome

CLÓVIS ROSSI

São Paulo - Os sem-terra mortos no conflito de Eldorado de Carajás, empilhados no necrotério, ganham uma identificação que é, no fundo, um retrato do Brasil, de hoje e de sempre: "corpo 1", "corpo 2", "corpo 3" e assim por diante.
Em vida, não tinham terra. Mortos, nem nome têm.
Repete-se, agravada, ano após ano, a divisão clássica da "Belíndia", um país que, supostamente, seria metade Bélgica, rica, desenvolvida, a caminho do Primeiro Mundo, e metade "Índia", pobre, atrasada, condenada.
Fosse apenas "Belíndia", já seria suficientemente grave. Mas suspeito que a Índia não merece a comparação.
O Brasil de Eldorado de Carajás que os telejornais mostraram e os jornais detalharam é mais parecido com a Libéria, a Somália e outras nações africanas que se dissolvem na selvageria das guerras tribais.
Aqui, as tribos em guerra não-declarada não se dividem a partir de linhas étnicas, mas sociais.
De um lado, os "com-tudo" ou quase tudo. Do outro, os que nem nome têm, na hora da morte, como não tinham uma vida digna desse nome.
Já vinha sendo assim em outros massacres do gênero, no campo ou nas cidades. Banalizou-se de tal forma a morte violenta que já não há nem sequer tempo para um gesto mínimo de respeito, ainda que póstumo, na forma de dar a cada cadáver a sua identificação.
Não basta afastar um coronel da PM, suspeito de ter agido de forma incorreta. Um ou dez coronéis não vão fazer grande diferença porque o problema é muito mais complexo.
Não se poderia esperar, da PM ou de quem quer que fosse, respeito à vida se, para uma ponderável fatia de brasileiros, a vida não vale nada.
Nesse ritmo, a contagem de cadáveres vai prosseguir e temo que, logo, cheguemos a "corpo mil", "corpo mil e um", "corpo mil e dois"...

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