São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 1996
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O motivo real

JANIO DE FREITAS

Ninguém mais poderá dizer, nem mesmo os Conys e Rossis da crítica maníaca ao nosso presidente, que o massacre no Pará gera muitas promessas de ação, mas será tão sem consequências quanto os anteriores. Já existe um efeito eloquente: dizem que Fernando Henrique, por causa do massacre, cancelou a viagem que faria a Washington em meado de maio (a viagem a Paris, ah, Paris a dimensão do massacre não foi bastante para chutar de maio a outro mês).
Qualquer um pode avaliar o que representa o cancelamento de uma viagem internacional para o globetrotter. O que permite deduzir o quanto os assassinatos oficiais o contristaram. Ainda assim, Fernando Henrique fez questão de deixar clara sua visão e bem precisado o motivo de "não se conformar com a chacina". Nenhum lugar seria melhor para esta abertura de coração e de mente do que a convenção nacional do seu PSDB, no fim-de-semana:
"Faço um apelo: se há realmente uma estrutura arcaica, vamos, com vontade e boa-fé, discutir o que pode ser feito".
E você, o que é que está fazendo aí, de olho ainda pregado neste xarope, em vez de já estar discutindo "se há realmente" uma estrutura arcaica? O príncipe dos sociólogos ainda não sabe se há.
E não diga que só essa frase já dá a medida da "boa-fé" com que ele quer "discutir o que pode ser feito". Ele tem, de fato, o grande motivo para que se faça "o que pode ser feito". Estava na frase imediatamente seguinte: "Precisamos mudar porque o presidente é quem paga perante o mundo".
Quem pensou, algum dia, que fosse preciso mudar por causa da fome, da miséria, dos massacres, das outras violências, das injustiças todas, da desumanidade brasileira, quem pensou assim que aprenda com o presidente-intelectual, com o príncipe dos sociólogos, com o social-democrata, com o dono da modernidade: "precisamos mudar porque o presidente", apaixonado por sua imagem, " é quem paga" com o desgaste dela "perante o mundo".
Por mim, nunca ouvi ou li, nem imaginaria tal possibilidade, frase de maior egoísmo, de mais desabrido cabotinismo, de egocentrismo mais desvairado. Vidas e mortes, desgraças e crimes, nada disso, ou o que quer que seja, é comparável à importância de evitar que Fernando Henrique "pague perante o mundo". Que saudável parece, de repente, o Fernando -Collor, naturalmente.
Os quase cem mortos nas enchentes do Rio não motivaram uma visita de solidariedade de Fernando Henrique ao Estado, nem sequer uma palavrinha de condolências. Só muitos dias de cobrança, por parte de políticos e de jornalistas, provocaram um pronunciamento ligeiro. Esquisito.
Na sexta-feira, quase todo o país emocionado com as imagens e notícias do massacre postas diante da sua mesa de jantar, em outro jantar, este festivo em homenagem a Minas, o que Fernando Henrique ofereceu ao noticiário foi alegria exibida, uma sucessão de risos e gargalhadas sem fim. Está nos jornais. Esquisito.
Sábado, na convenção do PSDB, era o gerador de leveza e de risos. Não era mais esquisito: Fernando Henrique abrira coração e mente ao abrir a convenção.

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