São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 1996
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O desafio da questão agrária

LUÍS NASSIF

O "Fantástico" repetiu quatro vezes a cena dos sem-terra avançando sobre a tropa da polícia e a fuzilaria que se seguiu. O texto do locutor evitava confirmar o que as imagens mostravam.
A revista "Veja" fez um pequeno box sobre a organização Movimento dos Sem-Terra (MST). O texto apenas tangenciava o que a ilustração mostrava: uma foto com os sem-terra da fazenda Macaxeira, armados e com os rostos encobertos por capuzes.
Faz sentido. Foi tão exacerbada a violência do Estado -praticada por soldados quase tão miseráveis quanto suas vítimas- que qualquer menção à radicalização do MST poderia ser entendida como atenuante para o massacre.
E nada, de fato, pode reduzir a dimensão do episódio, uma das páginas mais vergonhosas da história recente do país -ao lado dos massacres de Carandiru e Corumbiara.
No entanto, passada a comoção e entrando-se na discussão objetiva sobre a questão da terra no país, aceitar que essa radicalização existe é elemento fundamental para pautar qualquer ação política do governo.
Não para orientar posturas repressivas, mas para apressar a criação de mecanismos institucionais que canalizem as demandas políticas dos sem-terra para fóruns apropriados, com resultados objetivos, valorizando os negociadores e esvaziando a influência dos radicais na base.
Trabalho múltiplo
É trabalho portentoso, que depende de todos -não apenas do Executivo.
Da parte do Legislativo, rompendo com o lobby dos donos de terra e votando rapidamente leis que permitam a expropriação de terras improdutivas ou instituindo mecanismos fiscais que desestimulem o entesouramento de terras.
Da parte do Poder Judiciário, criando mecanismos que reduzam o poder dos latifundiários sobre a Justiça local.
Nesse sentido, a Justiça Federal tem ótima oportunidade para demonstrar a que veio.
Da parte da imprensa, esclarecendo objetivamente todos os ângulos da questão.
O que ocorreu com os assentamentos até hoje? Quais os que deram certo, e por quê? Quais os que falharam, e por quê? Qual a verdadeira natureza do MST? Qual o comprometimento da Justiça com os interesses de latifundiários?
Da parte do governo, definindo formas modernas de administrar a reforma agrária. Pelas informações disponíveis, o Incra é uma estrutura viciada.
Transferir a reforma agrária para os Estados -como pretende o governador pernambucano Miguel Arraes- significaria permitir a exploração política de tema de tal relevância.
Desassentamento
O ideal seria a constituição de um órgão com presença ativa da chamada sociedade civil, mas com uma estrutura que garantisse a gestão técnica da questão e a administração eficiente do componente financeiro da reforma agrária -criando modelos que permitissem captar recursos internacionais para financiar os assentados.
E, principalmente, não perder de vista que o assentamento de colonos é só uma peça de uma política agrária mais ampla.
Daqui a alguns anos, quando o eficiente sistema de estatísticas nacional completar suas medições sobre o ano de 1995, vai-se descobrir que, no momento em que mais se falou de assentamento de sem-terra, deve ter ocorrido um dos maiores desassentamentos rurais em muitas décadas, por conta de uma política de juros absurda, desacompanhada de uma política para o campo.
Se os que já estavam assentados perderam tudo, como pretender que a mera distribuição de terras para uma agricultura de subsistência seja a saída?

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