São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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A hora e vez dos "gauches"

LUÍS NASSIF

Minhas experiência é a mesma de todos os de minha geração, que procuraram resistir a um padrão autoritário presente em todos os momentos da nossa vida, ainda que com roupagens diferentes.
Fui aluno dos Maristas de Poços de Caldas, no início dos anos 60. Aluno dileto até os 13 anos, enquanto era o "Lacerdinha" -por influência de um avô lacerdista.
Maldito após 64, quando virei oposição, junto com todos os adolescentes do país, e passei a enfrentar castigos diários e acusações frequentes, absurdamente parciais.
Eram poucos os irmãos que conseguiam passar um pouco de oxigênio naquele ambiente sufocante.
Por onde andará a afetividade discreta de Paulo Portugal, a responsabilidade paternal de Nazário, o senso de justiça de José Bento?
E o irmão auxiliar da banda -de quem não me recordo o nome- o irmão auxiliar da banda, discreto, apagado até, mas que, ao final de cada castigo, me procurava solidário, apresentando suas perplexidades de adulto, quase iguais às minhas de adolescente?
O irmão da banda era o "gauche" do Colégio Marista e, assim que pode, tirou a batina e foi respirar o mundo.
Conspirações
Saí de lá para o Instituto Educacional, um colégio estadual de São João da Boa Vista.
Éramos um grupo de adolescentes, de 16, 17 anos, que gostava de teatro, de festivais de música popular, de assistir "Morte e Vida Severina" e de discutir a Semana de 22 -matéria prima preciosa para qualquer educador responsável.
Mas não éramos disciplinados e gostávamos de questionar -e escarnecer, admito- professores autoritários.
Por isso fomos todos, um a um, vítimas de conspiração articulada por uma diretora autoritária -"bomba" em inglês para um, em latim para outro, em matemática para o terceiro e assim por diante, até que o grupo se curvasse às regras do jogo.
Não conseguiram. Fingíamos nos enquadrar na escola, e fora dela levávamos peças satíricas, e compúnhamos paródias venenosas, tendo como personagens os opressores -que só foram plenamente informados do que já desconfiavam na noite da formatura.
Por onde andará Ana Maria Salomão, professora de português que compartilhava de nossas ansiedades, e que reforçava em nós a convicção de que errados eram os outros?
Ana Maria era a "gauche" do Instituto Educacional. De longe a melhor mestra, saiu de lá sem o devido reconhecimento, porque não falava, não andava e não ensinava duro, como determinava o padrão.
Jogo da burocracia
Na vida profissional, os valores eram os mesmos.
Nas redações, era proibido o questionamento de pautas e de atitudes de chefias. Para fazer carreira, talento e vontade eram virtudes menores. Havia a necessidade de entender o jogo de forças das redações, compor-se com grupos e aproximar-se de chefes.
Quase todos os especialistas da matéria foram tragados pelo tempo. Mas muitos "gauches" caíram pelo caminho.
Por onde andará, entre outros, Geraldo Hasse, um dos maiores repórteres que conheci, capaz de esculpir obras de arte em cada texto, sem desperdiçar uma palavra, mas incapaz, assim como eu, de entender o jogo sacana da burocracia?
Hasse desistiu de enfrentar a máquina e foi ser feliz no interior. No ambiente sindical, não era diferente. Tinha que se fazer o que o mestre mandasse.
Por onde andarão os "tarefeiros" do meu tempo, rapaziada bem intencionada que acreditava na candura das intenções dos líderes e que, uma a uma, descobriu-se manipuladas pelo jogo fétido do poder?
Avesso do mundo
O mundo deu voltas, mudou, passou por crises e chegou ao seu avesso.
Na moderna sociedade que se avizinha, não haverá mais espaço para os tipos previsíveis, burocráticos, autoritários ou submissos, para os leitores de bula, os mestres solenes e os sargentos de redação.
Programas de qualidade desenvolvendo formas objetivas de avaliação individual, informatização, fim do emprego convencional, modernas políticas de recursos humanos valorizando a criatividade, a adesão a idéias, tudo está ajudando a esculpir um novo paradigma de profissional.
Não interessa mais o aluno enquadrado, mas sem expedientes, ainda que com currículo exemplar.
Na nova sociedade, o vencedor será o que for atrás de novas soluções, ainda que atropelando os formalismos da burocracia, que aprender a conviver com as mudanças de ambientes e a praticar permanentemente a criatividade e a ética individual -a única capaz de despertar a verdadeira solidariedade.
Que Deus abençoe nossos filhos, que vão construir um mundo mais justo, e preserve a capacidade de todos para entender e aceitar o novo.
E que abençoe especialmente os "gauches" de minha vida, que chegaram antes do tempo.

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